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Postado às 03h45 | 15 Abr 2018 | Notícias sobre leitura

Crédito da foto: Reprodução O estímulo à leitura nunca foi um ponto forte na nossa cultura

(*) Aécio Cândido

São Paulo é uma cidade de 12 milhões de habitantes. De 20 milhões, se considerarmos a região metropolitana. Seu maior jornal, a Folha de São Paulo, um jornal não apenas da cidade, mas do Brasil, tem uma tiragem diária de 292 mil exemplares, contando os dois meios: impresso e digital. O Estadão é o segundo, com uma tiragem de 200 mil exemplares. É muito pouco. Apenas 0,4% da população de São Paulo lê um dos dois grandes jornais da cidade.

Vejamos a situação no Rio de Janeiro. O Rio tem 10 milhões de habitantes na região metropolitana. O Globo é seu diário de maior tiragem: 250 mil leitores pagantes, da  versão impressa (130 mil) e da versão digital (120 mil assinaturas), dão audiência ao jornal. A relação entre tamanho da população e consumo do jornal é, como em São Paulo, também muito baixa.

Vejamos o que ocorre em outros países. A região metropolitana de Montreal, a segunda maior cidade do Canadá, tem 3,6 milhões de habitantes, mais ou menos um terço da população do Rio e um quinto da de São Paulo. No entanto, tem jornais com tiragem de quase 500 mil exemplares. La Presse (A Imprensa) é um desses jornais. Outro é Le Devoir (O Dever), com um perfil um tanto diferente: um jornal denso, de opiniões mais consistentes, beirando o acadêmico.  Le Devoir tem 446 mil assinaturas digitais, a que se acrescenta, no sábado, 53 mil exemplares impressos.

Há um dado relevante para o significado destas contas: oficialmente, Montreal é uma cidade de língua francesa, porém boa parte de sua população é anglófona (15%) e alófona (allophone, no francês, 20%), palavra que não existe no português, mas que designa os falantes de línguas estrangeiras em meio a uma dada comunidade linguística. Os francófonos são 65% dessa população, ou seja, é este o percentual de gente que, em casa, comunica-se em francês. Os bilíngues, que dominam o francês e o inglês, são 53% da população. Mas ora, quem foi alfabetizado numa língua, por mais bilíngue que seja, sempre preferirá ler na língua de seus primeiros anos. Isso quer dizer que parte importante da população preferirá ler jornais em língua inglesa ou em outras línguas. Resta, portanto, para a imprensa de língua francesa, a audiência potencial de 2,34 milhões de leitores. Fazendo a relação entre população e número de leitores, temos que 40% dos francófonos leem um dos dois maiores jornais de Montreal.

Vejamos agora cidades menores, lá e cá. Em Natal, para uma população metropolitana de 1,4 milhão de habitantes, a tiragem do jornal mais importante, a Tribuna do Norte, é pífia: 9 mil exemplares diários durante a semana. Há quem diga que o número não é este, é bem menor. 

A cidade de Quebec (Canadá), cuja população metropolitana é de 700 mil habitantes, metade da população de Natal, tem um jornal, Le Soleil (O Sol), com uma tiragem de 75 mil exemplares durante a semana e 91 mil aos sábados.

Em Quebec, 54% da população leem um jornal regularmente. O hábito, embora menor entre os jovens, não é desprezível: 41% dos jovens entre 18 e 24 anos leem jornais regularmente (21% exclusivamente jornais impressos e 20% exclusivamente por meio digital, no tablet ou  celular). Este percentual é maior na Bélgica: 60% dos jovens belgas leem jornais.

Os números parecem refletir a realidade. Tive uma amiga, à época uma moça de 23 anos, americana do Tennessee, que tinha um hábito, para mim, estranho. Ela comprava diariamente um jornal de língua inglesa, o Globe and Mail, de Toronto, e um jornal de língua francesa, que variava a cada dia. Estávamos na cidade de Quebec. Cheguei a falar-lhe dessa estranheza. Não via no Brasil, entre minhas amigas, nada parecido. Sempre convivi com mulheres inteligentes, muitas intelectuais, algumas artistas, professoras universitárias ou do Ensino Básico, mas nenhuma delas leitora cotidiana  de jornal. No máximo, leitoras eventuais. A leitura de jornais, no Brasil, parecia-me um hábito marcadamente masculino. Os homens, sobretudo aqueles metidos na política, nos negócios ou na administração pública, eram os consumidores de jornais. Minha amiga estranhou meu estranhamento. Seu hábito parecia-lhe muito natural, era um hábito doméstico adquerido muito cedo, no convívio com os de casa e com a vizinhança. (Também comprava flores minha amiga. Sempre, muitas e variadas, e sem qualquer motivo especial. Por que gastar tanto com flores? - escandalizava-se minha lógica camponesa).

Outra mocinha, um pouco mais jovem do que minha amiga, estudante de Direito em uma universidade canadense, fluente em três idiomas (francês, inglês e espanhol), fez-me certa vez um relato orgulhoso de uma viagem que fizera a Boston, havia poucas semanas. Ela aproveitara a viagem para ir à biblioteca da Universidade Harvard finalizar uma pesquisa para um trabalho da faculdade. Seu orgulho estava em dizer que para escrever o trabalho pesquisara na biblioteca de Harvard. Falava com a alegria de quem contava o que se passara numa festa. No rumo que nossa conversa tomou, falei-lhe da raridade de livrarias no Brasil e na mistura desse ramo de comércio com o de papelaria. Ela me ouviu surpresa. Um ano depois, recebo dela um postal da Cidade do México (eram os anos 1990 e nesse tempo existiam postais) no qual me dizia que sua andança por vários quarteirões da cidade à procura de uma livraria trouxe-lhe à lembrança a nossa conversa. Sua conclusão era que a raridade de livrarias não era apenas uma particularidade do Brasil, mas da América Latina. Não de toda, certamente. Sempre ouvi comentários de que Buenos Aires tem mais livrarias do que o Brasil inteiro.

O estímulo à leitura nunca foi um ponto forte na nossa cultura. Numa certa faixa social, o gosto do filho pelos livros era motivo de preocupação dos pais. Seria sinal de uma tendência à loucura, à melancolia, à solidão ou à homossexualidade. Isso tem mudado, um tanto timidamente, mas tem. As feiras de livros, embora não cheguem às pequenas cidades, assim como as livrarias e bibliotecas, têm tido um papel relevante na disseminação desse gosto. A principal lição que elas deixam é que é possível formar leitores. Para nossa mentalidade mágica, acostumada a tudo enxergar como vindo do berço ou derivado de um golpe de sorte, isso é um grande avanço. É possível descobrir que a leitura pode ser um imenso prazer, uma grande festa para o espírito. Mas para gozar dessa delícia, precisa-se também aprender a lidar com o silêncio, com a concentração, com o esforço intelectual (a disposição de vencer barreiras, como um vocabulário mais específico, um enredo mais denso, um assunto mais espinhoso). Lidar com o silêncio é uma tarefa heroica numa cultura ruidosa como a nossa.

Por que estou dizendo tudo isso, dando-me ao trabalho de fazer contas e comparações? Sei lá, talvez porque acredite que ler nos torna seres humanos melhores. É possível: em 2017, houve 24 homicídios em Montreal, o que dá 0,6 assassinato por 100 mil habitantes. Em Mossoró, esta mesma taxa foi de 84. Quer dizer, aqui se mata 140 vezes mais do que em Montreal. Vai ver que uma coisa tem a ver com a outra.

(*) Aécio Cândido é professor da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), aposentado, autor de Tempos do Verbo (poesia)

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AUTOR

César Santos é jornalista desde 1982. Nasceu em Janduís (RN), em 1964. Trabalhou nas rádios AM Difusora e Libertadora (repórter esportivo e de economia), jornais O Mossoroense (editor de política no final dos anos 1980) e Gazeta do Oeste (editor-chefe e diretor de redação entre os anos 1991 e 2000) e Jornal de Fato (apartir dos anos 2000), além de comentarista da Rádio FM Santa Clara - 105,1 (de 2003 a 2011). É fundador e diretor presidente da Santos Editora de Jornais Ltda., do Jornal de Fato, Revista Contexto e do portal www.defato.com.

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