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Postado às 10h30 | 19 Mai 2019 | Redação "Bixa Presa" mostra a realidade da população LGBT nos presídios

Crédito da foto: Reprodução Documentário

Fábio Vale/JORNAL DE FATO

A vida por detrás das grades não é nada fácil. A afirmativa é uma unanimidade presente nos relatos dos(as) internos(as) do sistema prisional brasileiro, marcado por diversas deficiências. No caso da população LGBT encarcerada, a problemática é ainda maior. A punição acaba por ser dupla, em que a violência e o descaso se somam à penalidade imposta pelo delito cometido.

É o que constata um documentário produzido por um jornalista de 24 anos de idade formado na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). O audiovisual traz histórias e vivências de detentos(as) gays, bissexuais, travestis e transexuais que sofrem com a violência e o descaso atrás das grades, e mostra que o processo de ressocialização dificilmente está presente dentro desse cenário.

Idealizador do projeto, Felipe Cafrê contou como surgiu a ideia do documentário “Bixa Presa”. “Tratar de assuntos sobre gênero e sexualidade em produções audiovisuais sempre foi algo que me instigou a produzir, tanto que o meu primeiro documentário, ‘TRANSformar, Existindo na Educação’, retrata as conquistas e dificuldades que sujeitos e sujeitas trans enfrentam para entrar e permanecer na educação”, disse ele.

“Tendo essa motivação dentro de mim, depois de ler e assistir alguns materiais sobre pessoas encarceradas, me veio a vontade de desenvolver uma produção ligada a esse tema. Sentei com meu amigo Pedro Levi, aluno de Direito da Uern que já possui alguma experiência com públicos encarcerados, juntamos nossos conhecimentos e começamos a idealizar uma produção que pudesse abordar a dupla vulnerabilidade da população LGBTQ+ encarcerada. Mas, nada muito concreto, já que não possuíamos recursos para tirar essa proposta do papel”, continuou Felipe.

“Alguns meses depois desse nosso papo inicial, saiu um edital do Canal Futura, o ‘Doc Curta Duração’, com a proposta de financiar 20 produções documentais de até 14 minutos voltadas para o tema de Direitos Humanos. Então, submetemos nossa proposta que concorreu com outras 871 inscrições de todo o Brasil e ficamos entre os 20 selecionados para o financiamento do Canal Futura”, relatou.

Felipe contou também que sua ligação com a população LGBT se dá pelo fato de ele se reconhecer como uma pessoa trans não binária. Ele explica que “é alguém que não se encaixa em nenhuma das ‘caixas’ ou ‘expectativas’ que são postas sobre os nossos corpos após o nosso nascimento (masculino ou feminino)”. E destaca também o fato de “fazer parte de um grupo privilegiado que não integra os 92% de pessoas trans que estão na prostituição” e ter conseguido concluir o ensino superior e ter uma família minimamente estruturada.

“Penso que além do meu papel como jornalista de usar a comunicação como instrumento social, tenho que ajudar a dar voz ao meus companheiros e companheiras que seguem diariamente na resistência, que é ser um sujeito ou sujeita trans no país que mais mata transexuais no mundo. Assim, além de uma ligação profissional, sou intimamente ligado com a temática”, revela.

Felipe Cafrê explicou como se deu a escolha do nome do documentário

“O nosso objetivo é dar voz para esses sujeitos e sujeitas, para que possam falar da realidade de dupla vulnerabilidade, por serem apenados e também por serem gays, bissexuais, travestis e transexuais nesse ambiente tão hostil”. A declaração é do documentarista Felipe Cafrê, ao ser questionado sobre o porquê de o assunto população LGBT encarcerada ter atraído a atenção dele.

“Nossos corpos já são ‘coisificados’ diariamente, e assim, sendo vistos como coisas e menos humanos pela sociedade, é muito mais fácil violar nossas vidas sem que se crie nenhuma comoção ou impacto na sociedade. São poucos os que se importam com as vidas que estão sofrendo violências com requintes de crueldade diariamente nas esquinas do nosso país”, afirma Felipe.

“E assim nos surgiu o questionamento, ‘como seria a vivência dessas pessoas que já sofrem na nossa sociedade dentro de uma unidade prisional?’, onde a violência se faz muito mais presente e muitos dos preconceitos da nossa sociedade são intensificados”, assevera ele, contando que o nome do documentário remete à música “Bixa Preta”, da MC Linn da Quebrada, que integra a trilha sonora do documentário.

“É importante para nós que produzimos o documentário, que além de contarmos com uma equipe 100% LGBTQ+, que a trilha escolhida fosse de alguém que também pertence ao movimento, e Linn, que além se ser travesti, desenvolve um trabalho que sempre busca dar visibilidade para o público trans e foi a escolha perfeita para o nosso trabalho”, detalha Felipe.

“O nome tenta passar a forma que essas pessoas são vistas dentro do presídio. Se aqui fora já somos chamados dos mais diversos nomes que você possa imaginar, não pense que lá dentro existem muitas pessoas que se importam se a forma que vão tratar o apenado é pejorativa ou não. Eu pessoalmente olho para o termo “Bixa” como uma palavra que temos que nos apropriar. Somos Bixas, sim! E quem disse que temos que nos envergonhar disso? Vergonha tem que ter quem alimenta esses preconceitos dentro de si”, analisa.

Documentário mostra que população LGBT encarcerada sofre com estupros, agressões e xingamentos

As histórias contadas no documentário “Bixa Presa” se passam na Unidade Prisional Irmã Imelda Lima Pontes, localizada no município de Aquiraz (CE), na região metropolitana de Fortaleza (CE), e em funcionamento desde 2016 , sendo destinada para gays, travestis, bissexuais, idosos, cadeirantes e aqueles que respondem à Lei Maria da Penha. O jornalista Felipe Cafrê diz que a escolha pelo estabelecimento prisional se deu por ser uma unidade que dá uma maior atenção para públicos vulneráveis, incluindo, dentro deles, gays, bissexuais, travestis e transexuais.

“Assim, poderíamos encontrar uma maior concentração de personagens em um único local com histórias das suas passagens por outras unidades prisionais. Houve certa resistência da unidade prisional para que tivéssemos acesso a alguns espaços da unidade e de algumas personagens que não quiseram falar. Tentamos dialogar com algumas delas, mas, no fim sempre respeitamos as decisões das apenadas”, contou ele.

Felipe disse que o documentário levou seis meses para ser concluído, desde a concepção do roteiro até o envio do corte final para o “Canal Futura”, que acompanhou a produção do material. “Felizmente, nosso trabalho não precisou passar por nenhuma alteração no processo de construção. Posso te falar que as duas etapas mais cansativas foram as filmagens e a edição. O clima dentro do presídio é pesado, o tempo passa de forma diferente”, revelou.

“Sobre a edição, é muito delicado editar algo assim tão delicado. De forma alguma, queríamos olhar para essas pessoas como seres inferiores ou objetificar as suas vivências. Pedro e eu buscamos na montagem desse projeto criar um produto sensível e com um olhar humano, algo que não é comumente visto em outras produções, já que, como disse anteriormente, nossos corpos são coisificados por tudo e por todos”, relatou.

Felipe diz que se machuca em saber que dificilmente a sociedade vai lhes olhar para a população LGBT encarcerada com “bons olhos”, pela condição de apenado e por serem LGBTQ+. “Eu tenho um olhar de carinho sobre elas e eles. Não estou querendo negar que essas pessoas cometeram crimes e que estão pagando por eles, mas sentar com essas pessoas, ficar diante dos seus sonhos e saber que elas em muitos momentos das suas vidas não foram oportunizadas pela família, na escola e no mercado de trabalho”, afirma.

“Um dos objetivos desse documentário é desnudar essa realidade. O cárcere de LGBTQs no Brasil ainda não é tão estudado e debatido, e nos nossos estudos acabamos por perceber que, na maioria das vezes, as pessoas LGBTQs que vão cumprir pena ficam nas ‘solitárias’, no ‘isolamento’ sem qualquer contato exterior, se não, são colocadas entre alas comuns. Nesse último caso, as narrativas são carregadas de violências, estupros, agressões, xingamentos fazem, infelizmente, parte da rotina”, relata o documentarista, avaliando que o sistema ainda não pensa em ser inclusivo.

 

Personagens do documentário lutam por respeito e dignidade atrás das grades

Paulinha e Nathália. Essas são as duas personagens-chave do documentário “Bixa Presa”. Internas da unidade prisional cearense cenário da produção audiovisual, as duas se destacaram à frente de um movimento que luta por respeito e dignidade atrás das grades.

“Paulinha e Nathália são sujeitas muito importantes. Elas e outras apenadas organizaram um movimento no sistema prisional cearense, onde exigiram que fossem tratadas com respeito e dignidade. Exigiam um espaço onde pudessem ficar longe das violências, que, não diferentemente da sociedade civil, acontece também dentro das prisões. As duas são personagens-chave que nos fazem acreditar o quanto a organização frente a essas violências é importante”, contou o produtor do documentário Felipe Cafrê.

Ele detalha que Nathália é uma mulher trans e, como cabeleireira profissional, passa o tempo na prisão arrumando o cabelo das colegas de cela, e que Paulinha se coloca como uma das “fundadoras” da unidade prisional. Felipe frisa que, além de ajudar a captar as imagens e fazer as entrevistas, também ajudou a montar o conteúdo, a editar e a finalizar a produção, participando ativamente de todo o processo de produção.

“Eu assisti, reassisti esse documentário das mais diversas formas que ele assumiu até o último corte, e posso te falar que foi como o parto de um filho, doloroso e cansativo, mas muito gratificante”, lembra, revelando que ficou emocionado com o resultado final e sem descartar a possibilidade de dar continuidade ao trabalho.

“Vamos aguardar o lançamento do documentário e observar a repercussão. Nosso sonho seria conseguir fechar outras parcerias, inclusive com o Canal Futura, para que seja viável levar essa temática para frente, desenvolver uma série, quem sabe? Já temos em mente outras unidades prisionais que queremos visitar e algumas ideias para possíveis produções, mas, como produzir audiovisual é muito caro, só o futuro nos dirá se nossos sonhos poderão ser atendidos”, disse.

Ele explicou que o documentário foi desenvolvido através de um edital em parceria com o Canal Futura, o que coloca algumas limitações sobre o trabalho e o uso do nome “Bixa Presa” para dar seguimento à produção. O audiovisual é o trabalho de conclusão de curso de Jornalismo de Felipe. Ele destaca que a experiência com a produção audiovisual começou a se intensificar após ter participado do programa “Geração Futura” do Canal Futura. Recentemente, Felipe foi selecionado para participar do projeto “Globo Lab Profissão Repórter 2019” e passar cinco dias na redação do programa.

 

LANÇAMENTO

O documentário será lançado nesta terça-feira (22), às 19 horas, no Teatro Lauro Monte Filho, em Mossoró. A exibição do audiovisual contará com a presença de integrantes da equipe de produção do material, como o próprio Felipe (direção, roteiro, imagens, edição, finalização e direção de arte) e Pedro Levi (roteiro e produção). Eles vão explanar sobre o processo de produção. O evento deverá ter ainda uma mesa de debate sobre o trabalho, com a presença da diretora da Unidade Prisional Irmã Imelda, Lígia Canuto. o documentário contou ainda com imagens e som direto de Fernando Nicolas.

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