Por Vinícius Lisboa - Repórter da Agência Brasil - Rio de Janeiro
Experiência pioneira em todo o mundo, a legalização da maconha no Uruguai completa 10 anos em dezembro ainda sob o efeito dos temores que moldaram sua discussão em 2013. O resultado desse cenário foi um sistema fortemente regulado que, segundo pesquisadores do tema, produziu efeitos positivos e negativos no mercado.
Fundador e primeiro presidente da Câmara de Empresas de Cannabis Medicinal do Uruguai, Marco Algorta acompanhou o debate e a implementação das mudanças legais que criaram o mercado regulado de maconha no Uruguai. Essas medidas só entraram em vigor de forma completa em 2017, quando o Instituto de Regulação e Controle da Cannabis (IRCCA) passou a credenciar farmácias aptas a vender a maconha produzida por empresas licenciadas no país.
“O argumento político que se usou naquele momento era ajudar na luta contra o narcotráfico, mas tomando cuidado para não 'envenenar os nossos jovens'. E o que se percebe é que esses dois preconceitos estavam totalmente errados”, analisa o uruguaio
Nesses seis anos de comércio legal de cannabis, mais de 10 toneladas de maconha foram compradas de forma regular nas 37 farmácias registradas do país. O número de cadastrados para a compra chegou a 61 mil, e todos precisam ser maiores de idade, cidadãos uruguaios e residentes no país. O Uruguai conta ainda com duas outras formas de acesso à maconha: o autocultivo e os clubes canábicos, que plantam a cannabis e dividem entre seus membros.
Marco Algorta descreve que o medo de que a legalização “ameaçasse a juventude” não se comprovou, e a maconha legalizada tem como público frequente os adultos com mais de 40 anos, enquanto adolescentes e jovens uruguaios continuam a buscar preferencialmente outras drogas, como o álcool. Ele avalia que a maconha legalizada não estimulou interesse nem gerou baixa percepção de risco, e o resultado mais relevante foi um uso consciente e com redução de danos por aqueles que já a utilizavam.
“O consumo de cannabis entre adolescentes e jovens no Uruguai cresceu menos que a média regional, com países que não legalizaram. Por exemplo, o Brasil. A cannabis continua sendo a droga preferida de quem foi adolescente durante o proibicionismo, e não é a de quem foi adolescente durante a legalização”, afirma.
Uma pesquisa apresentada em agosto do ano passado pelo Observatório Uruguaio de Drogas mostrou que o nível de uso de maconha por adolescentes de 13 a 17 anos de escolas uruguaias não aumentou desde a aprovação da lei. Segundo a pesquisa, 19% dos entrevistados havia consumido maconha nos últimos 12 meses, e 11%, no último mês. Vale ressaltar que a legalização da maconha no Uruguai não permite o acesso de adolescentes à droga. Outro levantamento do mesmo observatório mostra que aumentou a idade média em que o consumo de maconha tem início, de 18,3 anos, em 2011, para 20,1 anos, em 2018.
O segundo mito derrubado, acrescenta ele, é o de que a maconha legalizada seria um golpe contra o narcotráfico, que lucra mais com drogas como a cocaína. Assim como outros países na América do Sul, o Uruguai tem sofrido com problemas causados pelo tráfico internacional dessa droga, sendo usado como rota secundária para a cocaína que sai principalmente da Colômbia, Bolívia e do Peru em direção à Europa. Em 2022, a quantidade de cocaína apreendida no país aumentou mais de 50%, chegando a cerca de 5 toneladas, segundo o site InsightCrimes, que reúne dados criminais da América Latina.
A violência no Uruguai foi um ponto importante na argumentação a favor da lei, mas, 10 anos após a legalização, a taxa de homicídios no país continuou a subir, segundo dados públicos analisados pelo Banco Mundial. Em 2010, houve 6 assassinatos para cada 100 mil habitantes no Uruguai. Em 2013, quando a lei foi aprovada, a proporção havia subido para 8 por 100 mil. Em 2018, chegou a 12 por 100 mil, caiu para 9 por 100 mil no ano seguinte, e voltou para 11 em 2022.
O fortalecimento do narcotráfico no continente e os conflitos armados gerados pelos grupos criminosos que tentam dominar esse mercado tem sido associado por especialistas ao aumento da taxa de homicídios em diversos países da América Latina. Nesse contexto, o Uruguai tem uma proporção de assassinatos menor que outros países como Brasil (19 por 100 mil), México (25 por 100 mil), Honduras (35 por 100 mil) e Venezuela (40 por 100 mil).
“A cannabis não é muito significativa para argumentar que a legalização da maconha é um golpe ao narcotráfico. Isso é uma falácia que foi comprovada. Essa mudança não gerou uma diminuição. Os grandes resultados contra o narcotráfico vêm com o combate aos crimes do colarinho branco, como a lavagem de dinheiro. Não vai ser por meio da legalização da maconha. O Uruguai continua tendo 50% da população consumidora para fins de uso adulto procurando o mercado ilegal ou não regulado”.
A manutenção de um mercado ilegal de maconha em um país que legalizou a droga se deve a vários fatores, avalia Algorta, mas um deles se deve à desconfiança com relação ao Estado.
“As instituições geram certa desconfiança, você precisa se inscrever no governo, dar seu nome e seu sobrenome. Se eu for comprar cerveja na esquina, não preciso dar meus dados ao governo. Mas, se eu quero comprar maconha, eu preciso me inscrever em um registro como consumidor de cannabis. Esse sem dúvida é o primeiro grande obstáculo”, afirma.
Especialista em direitos humanos e fundadora do Movimento Mizangas Mujeres Afrodescendientes, Tania Ramirez, denuncia que o avanço do narcotráfico tem produzido vítimas nas periferias e entre a população negra do Uruguai, enquanto o narcotráfico se articula internacionalmente para atravessar o país com volumes cada vez maiores de cocaína.
Enquanto isso, ações de repressão a pequenos traficantes têm se intensificado e também geram o encarceramento de pessoas em vulnerabilidade, como a população em situação de rua e pessoas com uso problemático de substâncias.
“Existem estruturas nas esferas de elite que enriquecem com o narcotráfico e estão dentro da estrutura estatal. E quem são as vítimas? As pessoas mais pobres, os negros, as pessoas que estão nas periferias, que são apenas os distribuidores de uma pequena parte. Não chegam 250 quilos de cocaína na periferia, chega um resto, que é repartido”, afirma. “E todos os dias o Estado encarcera microtraficantes e pessoas que estão em situação de pobreza, marginalidade e consumo. O estado encarcera a pobreza”.
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