Quarta-Feira, 02 de abril de 2025

Postado às 09h45 | 01 Abr 2025 | redação Mentira, vaias e aplausos: a sessão do Congresso que selou a ditadura

Crédito da foto: Reprodução Golpe militares de 1964

Por Congresso em Foco

Na madrugada de 2 de abril de 1964, sob aplausos, vaias e tumulto, o Congresso Nacional protagonizou um dos episódios mais controversos de sua história: a declaração da vacância da Presidência da República, mesmo com o presidente João Goulart ainda em território nacional e no exercício de suas funções. A sessão foi presidida pelo presidente do Congresso, o paulista Auro de Moura Andrade, figura central no processo que deu aparência de legalidade ao golpe militar que mergulharia o país em uma ditadura de 21 anos.

"O senhor presidente da República deixou a sede do governo, abandonou o governo! Assim sendo, declaro vaga a Presidência da República", declarou o senador, sob protestos dos governistas e das aclamações dos golpistas.

Os 61 anos do golpe militar são lembrados uma semana depois de o ex-presidente Jair Bolsonaro e outros sete aliados se tornaram réus no Supremo Tribunal Federal por tentativa de golpe de Estado.

A declaração de vacância do cargo, feita por Moura Andrade, foi sustentada em uma falsa alegação: a de que o presidente da República teria abandonado o país sem autorização do Parlamento. Na realidade, uma carta lida em plenário minutos antes, assinada pelo chefe da Casa Civil, Darcy Ribeiro, informava que Jango havia viajado no dia dia anterior (1º) de Brasília para o Rio Grande do Sul, onde buscava apoio junto a tropas legalistas, tentando articular uma reação. Em pleno exercício de seus poderes constitucionais, frisava o comunicado. Mesmo assim, Moura Andrade insistiu: a Nação estava acéfala. 

Naquela sessão conturbada, convocada às pressas, apenas 178 dos 460 parlamentares estavam presentes. O presidente do Congresso levou adiante o rito, desconsiderando questionamentos sobre a legalidade de seus procedimentos. "Declaro vaga a Presidencia da República e, nos termos do artigo 79 da Constituição, declaro presidente da República o presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli", determinou antes de encerrar a sessão, em meio a aplausos, vaias e xingamentos. "Canalha, canalha, canalha", gritou Tancredo Neves. "Golpista", apontaram outros parlamentares. O deputado governista Rogê Ferreira, de São Paulo, recepcionou o colega com uma cusparada no rosto.

Moura Andrade, acompanhado pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Álvaro Ribeiro da Costa, dirigiu-se até o Palácio do Planalto, onde, às 3h45 da madrugada de 2 de abril, deu posse a Mazzilli como presidente da República. Horas mais tarde, no Rio, cerca de 1 milhão de pessoas saíam às ruas para a "Marcha da Vitória".

 

Forças Armadas

Vigiada de perto por militares, a cerimônia realizada no Congresso Nacional marcou o desfecho de uma escalada de eventos que, nos dois dias anteriores, havia incluído a marcha de tropas de Minas Gerais rumo ao Rio de Janeiro e a ocupação do Forte de Copacabana, marcos decisivos do golpe de 1964. 

A articulação dos militares legalistas não se concretizou. Uma greve geral, proposta pelo Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) em defesa do governo, também não obteve sucesso. Buscando proteção, João Goulart deslocou-se do Rio para Brasília em 1º de abril, seguindo posteriormente para Porto Alegre. Lá, Leonel Brizola buscava organizar a resistência, contando com o apoio de oficiais legalistas, numa tentativa de repetir o que havia acontecido em 1961.

 

Choro e exílio

A notícia da posse de Ranieri Mazzilli como presidente interino chegou a João Goulart nas primeiras horas da manhã do dia, em Porto Alegre, onde ele estava acompanhado do deputado Leonel Brizola. Eram 5h21 quando Jango foi informado de que tropas vindas de Curitiba se aproximavam da capital gaúcha.

Abalado, teve uma crise de choro e, temendo ser capturado, decidiu se refugiar na fazenda Riacho Grande, em São Borja (RS), onde sua família o esperava. Ali, sob orientação do general Assis Brasil, ex-ministro de seu governo, redigiu um pedido de asilo ao Uruguai. Jango morreu em 1976 sem voltar ao Brasil.

 

Poder militar

Mazzilli ocupou a Presidência por 13 dias. Era seu segundo mandato interino, após ter assumido o cargo pela primeira vez em 1961, durante a crise provocada pela renúncia de Jânio Quadros. Mas, em 1964, seu papel era apenas simbólico. O verdadeiro poder estava nas mãos de uma junta militar autodenominada Comando Supremo da Revolução, formada pelo almirante Augusto Rademaker (Marinha), pelo general Artur da Costa e Silva (Exército) e pelo brigadeiro Francisco de Assis Correia de Melo (Aeronáutica).

Essa junta foi responsável por consolidar o novo regime. No dia 9 de abril, publicou o Ato Institucional nº 1, que abriu caminho para a suspensão de direitos políticos, cassações e outras medidas de exceção. Dez dias após o golpe, 40 parlamentares haviam perdido seus mandatos e direitos políticos. O Congresso, ainda em funcionamento formal, passaria a ser tutelado pelos militares, com recesso decretado sempre que contrariasse os interesses do regime.

Em 11 de abril, já sob influência do novo regime, o Congresso elegeu indiretamente o general Humberto Castelo Branco para a Presidência. Foram 361 votos favoráveis e 72 abstenções. No dia 15, Mazzilli passou o cargo, selando o início oficial de uma longa e sombria era de ditadura no Brasil. Em 1965, o Ato Institucional nº 2 extinguiu os partidos políticos e instaurou o bipartidarismo, ampliou o número de ministros do Supremo Tribunal Federal e concentrou ainda mais poderes no Executivo.

 

Sessão anulada

A atuação de Auro de Moura Andrade em 2 de abril de 1964 ficou marcada como um gesto decisivo para a consolidação do golpe. A falsa legalidade criada por ele deu respaldo institucional à ação militar. Meio século depois, em 2013, o Congresso Nacional anulou simbolicamente a sessão que declarou a vacância da Presidência, reconhecendo o erro histórico. Mas a farsa construída naquela madrugada já havia feito seu estrago.

O golpe de 1964 teve o apoio direto dos Estados Unidos, que temiam o avanço de políticas mais independentes na América Latina. A deposição de João Goulart, que pretendia combater as desigualdades com reformas sociais e econômicas, abriu caminho para uma ditadura que silenciou vozes, censurou a imprensa, torturou opositores e atrasou em décadas o processo democrático brasileiro. 

Opositor declarado

Auro de Moura Andrade não era um político qualquer. Formado em Direito pela Faculdade do Largo de São Francisco (USP), começou a carreira política na década de 1940. Passou por diversos partidos - UDN, PTN, PSD - e, em 1961, assumiu a Presidência do Senado, cargo que ocuparia por sete anos consecutivos.

Seu protagonismo no cenário político ficou evidente durante a crise que se seguiu à renúncia de Jânio Quadros, em agosto de 1961. Na época, conduziu o Congresso durante os debates que culminaram na adoção provisória do parlamentarismo, medida que viabilizou a posse de João Goulart como presidente. Curiosamente, foi o mesmo político que, menos de três anos depois, usaria seu poder para destituir o presidente que ajudou a empossar.

Em 1962, chegou a ser indicado por João Goulart para ser primeiro-ministro e substituir Tancredo Neves. Declinou da indicação após o então presidente solicitar que ele deixasse escrita, em seu poder, uma carta de renúncia.

 

Marcha da Família

O senador se tornou um dos principais opositores de Jango, acusado por setores conservadores de ser comunista por defender reformas estruturais, as chamadas "Reformas de Base". Moura Andrade participou ativamente das articulações golpistas: discursou na Marcha da Família com Deus pela Liberdade, apelou às Forças Armadas para restabelecerem a ordem constitucional e declarou publicamente o rompimento entre os poderes Legislativo e Executivo semanas antes do golpe. 

Moura Andrade tentou integrar a chapa de Castelo Branco como vice-presidente, mas foi preterido por José Maria Alkmin. Em 1970, perdeu a disputa interna pela candidatura ao Senado por São Paulo e deixou a política. Entre 1968 e 1969, ocupou o cargo de embaixador do Brasil na Espanha. Faleceu em 1982, aos 67 anos, enquanto presidia o Banco de Desenvolvimento do Estado de São Paulo.

Apesar de sua fidelidade aos militares, Moura Andrade demonstrou, em episódios pontuais, desconforto com os excessos do regime. Em 1966, apoiou o presidente da Câmara, Adauto Lúcio Cardoso, que se recusou a acatar a cassação de seis deputados. A retaliação veio com o fechamento do Congresso por um mês. O Parlamento seria fechado outras duas vezes pela ditadura, 1968 e 1977.

 

Abaixo, a transcrição do pronunciamento do presidente do Congresso em 1964:

"Atenção. O Sr. presidente da República deixou a sede do governo. Deixou a nação acéfala.

Numa hora gravíssima da vida brasileira, em que é mister que o chefe de Estado permaneça à frente do seu governo, abandonou o governo.

E esta comunicação faço ao Congresso Nacional. Esta acefalia, esta acefalia configura a necessidade de o Congresso Nacional, como poder civil, imediatamente tomar a atitude que lhe cabe nos termos da Constituição brasileira.

Para o fim de restaurar nesta pátria conturbada a autoridade do governo, e a existência de governo, não podemos permitir que o Brasil fique sem governo, abandonado.

Há sob a nossa responsabilidade a população do Brasil, o povo, a ordem. Assim sendo, declaro vaga a Presidência da República."

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