Segunda-Feira, 10 de março de 2025

Postado às 02h40 | 22 Out 2017 | OS ANTI-BARTLEBY

(*) Johann Freire

Existem escritores que, mesmo tendo uma sólida formação literária e um nível de exigência elevadíssimo (ou precisamente por isso), de uma hora para outra renunciam à escrita; dão por encerrada uma obra em andamento ou nem sequer chegam de fato a escrevê-la. É o que caracteriza a síndrome de Bartleby.

Essa doença, também conhecida como pulsão negativa ou atração pelo nada, empresta seu nome do protagonista do conto seminal de Herman Melville (“Bartleby, o escrivão”) e foi inventariada pelo escritor catalão Enrique Vila-Matas em sua obra-prima “Bartleby e companhia”.

De início, o desconcertante copista de Melville trabalha à exaustão, silenciosa e incansavelmente, como se sua vida dependesse daquilo, até que, dias depois, para espanto do seu chefe e sem nenhuma razão aparente, ele se transforma na personificação da recusa, no artista do não. “Preferiria não o fazer” (“I would prefer not to”) é a frase reincidente com a qual ele se aparta do mundo. A cada ordem, a cada convite, a cada solicitação, Bartleby dispara: “Preferiria não o fazer”.

Rimbaud, Juan Rulfo, Salinger e Harper Lee são alguns nomes ilustres que, imortalizados por um, dois ou três livros, em algum momento cederam ao silêncio e entraram para a extensa lista dos artistas do não, para a extensa lista dos gravemente afetados pela síndrome de Bartleby.

Um fenômeno curioso acomete os escritores de Mossoró. Aqui a síndrome de Bartleby encontra sua antítese. O nosso mal não é o do escritor que não escreve; é o do escritor que não lê mas escreve, escreve e publica muito, ruidosa e incansavelmente. Sofremos da síndrome de anti-Bartleby.

Na história da literatura, não é de todo incomum o caso do escritor que não lê. Consta que V. S. Naipaul, prêmio Nobel de literatura de 2001, não cultivava a leitura como um dos seus hábitos favoritos. Numa conversa que teve com o autor de “Uma curva no rio”, Susan Sontag lhe perguntou o que achava de alguns livros recentes, e citou nomes e autores; V. S. Naipaul não fazia ideia do que ela estava falando e arrematou: “Eu sou um escritor, não um leitor.”

Essa frase cai bem na boca do escritor local. “Eu sou um escritor, não um leitor” é a resposta mossoroense ao “preferiria não o fazer” de Bartleby. O problema é que essa desinibição desenfreada não produziu até hoje nada digno de nota.

A arrogância de V. S. Naipaul pode ser justificada pela obra que deixou. Mas não há nada que justifique a arrogância (ou preguiça travestida de arrogância) do nosso escritor. Suas páginas são um amontoado de lugares-comuns, nascidas de um impulso primitivo, pueril, sem filtro e desprovido de qualquer senso estético, que reivindica a noção romântica de que o indivíduo, entregue a si mesmo, é por natureza interessante, quando na verdade é apenas banal, ingênuo, tolo, repetitivo.

É claro que estou falando de um tipo muito comum de escritor, que prolifera em tudo quanto é lugar, mas que em Mossoró ganhou solo fértil. Ele é frequentador assíduo de bares e saraus, não resiste a um microfone, acredita na espontaneidade, e ao menor pretexto declama afetadamente um poema anódino de sua própria autoria. (Suspeito que ele só virou escritor porque não aprendeu a tocar violão.) É esse caráter festivo que o faz publicar com tanta frequência.

Eu diria que, em literatura, não há nada mais nocivo do que a espontaneidade. Sente-se ao lado de uma pessoa espontânea; em questão de minutos ela terá contado minuciosamente sua vida, subido na mesa e feito striptease. O mesmo vale para a escrita: cada vírgula mal colocada é um perdigoto cuspido na cara do leitor, cada reticência, cada exclamação sem propósito é uma peça de roupa que o escritor espontâneo lhe atira nas fuças.

A alma espontânea se sente no direito de escrever qualquer coisa sem nem ao menos ter aprendido os instrumentos mais rudimentares do ofício. Ela rejeita esses rudimentos sob a desculpa de que reprimiriam seu impulso criativo. É o mito do bom selvagem, da pureza corrompida, maculada, emparedada pela técnica, pelo conhecimento prévio, cumulativo. Pela tradição. É a ideia estúpida e solipsista de que o mundo nasce junto com você e desaparece quando você morre.

Esse império do eu não produz nada senão banalidades. Banalidades que podem até ser engraçadinhas numa postagem de blog ou Facebook, que até podem animar os convivas durante um sarau ou entreter o leitor distraído de um jornal, mas que não precisam estar nas páginas de um livro.

Contra essa verborragia reinante, contra esse impulso desenfreado de expressão, contra essa comichãozinha poética que dá e custa a passar, a síndrome de Bartleby funciona muito bem como antídoto. Espero que os escritores locais se quedem gravemente enfermos e que de agora em diante internalizem o mantra: “Preferiria não o fazer.”

Os leitores ficarão eternamente gratos.

(*) Johann Freire - Escritor e bibliófilo (johannfreire@msn.com)

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AUTOR

César Santos é jornalista desde 1982. Nasceu em Janduís (RN), em 1964. Trabalhou nas rádios AM Difusora e Libertadora (repórter esportivo e de economia), jornais O Mossoroense (editor de política no final dos anos 1980) e Gazeta do Oeste (editor-chefe e diretor de redação entre os anos 1991 e 2000) e Jornal de Fato (apartir dos anos 2000), além de comentarista da Rádio FM Santa Clara - 105,1 (de 2003 a 2011). É fundador e diretor presidente da Santos Editora de Jornais Ltda., do Jornal de Fato, Revista Contexto e do portal www.defato.com.

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