Terça-Feira, 04 de fevereiro de 2025

Postado às 14h15 | 31 Jan 2021 | Lições Merkelianas

Crédito da foto: Reprodução Angela Dorothea Merkel

(*) Por Francisco Glauber Pessoa Alves

Nascida no ano de 1954 em Hamburgo, então Alemanha Ocidental, Angela Dorothea Merkel mudou-se com a família, ainda criança, para a Alemanha Oriental. Com a queda do Muro de Berlim (1989) e a reunificação germânica, ingressou na vida pública e política. Exerceu vários cargos e foi eleita para o Bundestag (Câmara dos Deputados) pelo Estado de Mecklemburgo-Pomerânia Ocidental. Em 2005, assumiu o cargo de Chanceler Federal, responsável pela Chefia de Governo (equivalente ao de Primeiro Ministro), onde permanece até o momento. Nos países que adotam o parlamentarismo, o Presidente exerce atribuições apenas de Chefe de Estado. Não há, no presente século e mesmo no passado, nenhuma outra mulher tão representativa em liderança, influência e poder, se considerarmos o tempo que está no cargo e através da forma absolutamente democrática. Basta dizer que a reconhecida revista Forbes a elegeu doze vezes como a mulher mais poderosa do mundo.

A Alemanha é tida como o grande motor econômico da Europa, principalmente após a crise de 2008, onde se mostrou um farol para o continente por sua disciplina fiscal, contribuindo fortemente com países que entraram em colapso financeiro (Portugal, Espanha, Grécia, Irlanda, dentre outros). Isso com seu PIB per capita sendo, para 2019, conforme Banco Mundial, apenas o 18º do mundo (= 46.259 dólares), atrás, por exemplo, da Noruega (6º), dos Estados Unidos (8º e único com população maior do que a própria Alemanha no ranking), da Dinamarca (11º), da Austrália (12º) e da Suécia (14º).

Desde março de 2020, o mundo vem enfrentando o brutal COVID-19, mais conhecido como coronavírus. Pesquisas apontam que o vírus já estava circulando desde dezembro de 2019. Pegos de surpresa, muitos não acreditaram na sua força e intensidade. Vários líderes importantes adotaram o negacionismo, seja quanto à existência da doença, seja quanto à sua mortalidade, como o norte-americano Trump, o inglês Boris Johnson no início, o russo Putin etc.. Assombrado, o mundo assistiu mortes diárias na rica e culta Europa que progressivamente se espalharam pelo mundo como há muito não se via. A última pandemia já distava muito no tempo: a Gripe Espanhola. Originada nos EUA, na verdade, e omitida durante a 1ª Guerra Mundial, quando descoberta, para não atingir a moral das tropas, durou de 1918 a 1920 e matou estimadas 50 milhões de pessoas.

Um pronunciamento paradigmático foi feito por Merkel em 18 de março de 2020 ao país. Ela disse: uma crise viria e mudaria a noção de normalidade, de vida pública e de interação social, como não acontecia desde a 2ª. Guerra Mundial. O sistema público de saúde alemão provavelmente era um dos melhores do mundo, seguiu, mas não suportaria a demanda sem a colaboração e o sacrifício de cada concidadão, em termos sociais e econômicos, como decorrência do isolamento. A Alemanha venceria o desafio, desde que cada um, individualmente, cumprisse a sua tarefa em prol da coletividade. Ela fez uma advertência clara: “É sério!”. O número de mortes à época era de 13 e de casos confirmados, 6.012.

O tempo passou e o coronavírus alargou seu morticínio. Dada a subida do número de casos (1,2 milhão) e de mortes (19.932) no país, um novo lockdown foi tido como inevitável pela Chanceler em 09 de dezembro de 2020. Somente naquele dia, 590 pessoas perderam a luta para a doença. A Chanceler foi ao parlamento justificar as medidas de fechamento de estabelecimentos e de isolamento no Natal que viria (sem grandes reuniões, inclusive familiares), todas de cunho científico e propostas pela respeitada Academia Nacional de Ciências Leopoldina. Ela foi altercada por adversários minoritários no Parlamento (lockdowns seriam “contraproducentes”, “grotestos e sem objetivos”, bem como “destruidores da indústria”) e, num tom incomumente emocionado (principalmente para um povo conhecido, injustamente, pela frieza), foi taxativa: “Me dói, dói muito no meu coração, mas se o preço dessas sutilezas é, agora, a morte de 590 pessoas por dia, então isso não é aceitável. Temos que endurecer as medidas”. Os colegas aplaudiram-na efusivamente e as propostas foram endossadas. Já em janeiro de 2021, nada obstante iniciada a vacinação e detectada a resiliência da doença, medidas ainda mais intensas foram implementadas naquele país.

Como líder maior do seu povo, desde o início, Merkel foi clara, transparente e responsável. Não falseou a dura verdade. Não fez pouco caso do que podia ser feito. Não se afastou de sua responsabilidade. Não atribuiu a situação a outrem ou a um inimigo imaginário. Não deixou de dizer exatamente a cada alemão a crueza da situação. Não tomou decisões que não fossem calcadas na ciência. Não se fez ausente. Não agiu buscando sobrevivência política. Não escarneceu de ninguém. Ela não foi especialmente fora da curva do que razoavelmente se espera de um bom líder. Ela, em suma, fez e está buscando, comprometidamente, fazer seu dever, como outros tantos tentam.

Acima de tudo, desde sempre e mesmo no tempo em que, tristemente, parece que as mortes, por sua proliferação, vão se tornando apenas estatísticas, Merkel foi humana e decente. Segundo o site da Universidade de Medicina Johns Hopkins, 2.135.108 de pessoas morreram por COVID-19 até 25 de janeiro de 2021; 217.037 no Brasil (cerca de 211 milhões de habitantes), 2º país com mais número de mortes, e 52.626 na Alemanha (83 milhões de habitantes), 11º em quantitativo de óbitos. Até 15 de janeiro de 2021, conforme dados do jornal espanhol El País, o Brasil tinha 974 (12º no ranking) mortes por milhão e o País Tedesco 540 (23º). As comparações são tanto mais válidas, para nosso caso, quando feitas para com países de grande população. Os EUA sofrem mais ainda com a pandemia, mal enfrentada, se assim pode ser dito, como decorrência de uma presidência inconsequente, para dizer o mínimo, que, felizmente, foi repudiada nas urnas ao fim de 2020.

Merkel possui índices de popularidade acachapantes (75%) e, para felicidade de seus adversários, já anunciou que não se candidatará à reeleição, em setembro de 2021. A Alemanha já fez muita coisa ruim, como o expansionismo conducente às duas Guerras Mundiais, o nazismo, a eugenia, o holocausto, o genocídio. Ora está agindo responsavelmente, por seu exemplo como país e pela forma como sua gestora maior lidera e enfrenta uma pandemia. Para muito além do futebol, como poderíamos nos espelhar nelal!

(*) Juiz Federal (SJRN) - Doutor e Mestre em Direito (PUC/SP).

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AUTOR

César Santos é jornalista desde 1982. Nasceu em Janduís (RN), em 1964. Trabalhou nas rádios AM Difusora e Libertadora (repórter esportivo e de economia), jornais O Mossoroense (editor de política no final dos anos 1980) e Gazeta do Oeste (editor-chefe e diretor de redação entre os anos 1991 e 2000) e Jornal de Fato (apartir dos anos 2000), além de comentarista da Rádio FM Santa Clara - 105,1 (de 2003 a 2011). É fundador e diretor presidente da Santos Editora de Jornais Ltda., do Jornal de Fato, Revista Contexto e do portal www.defato.com.

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