Sábado, 23 de novembro de 2024

Postado às 06h15 | 22 Out 2023 | redação Márcio de Lima Dantas: 'A (meta) pintura de Laércio Eugênio'

Crédito da foto: Reprodução Detentor de uma dicção pictórica assaz original no que concerne aos meios utilizados pela pintura de

Por Márcio de Lima Dantas

Laércio Eugênio (Sítio Mata Seca, Frutuoso Gomes, 1959) assenta-se, contemporaneamente, como um dos mais importantes artistas plásticos do Rio Grande do Norte. Detentor de uma dicção pictórica assaz original no que concerne aos meios utilizados pela pintura desde sempre. Acontece que o artista optou por outro caminho, imprimindo à sua obra um tanto de originalidade, fazendo com que marque um diferencial com relação aos seus pares. Com efeito, suas telas parecem ser puro pretexto para questionar uma representação realista ou abstrata do mundo que o cerca ou como chegam as emissões do real em seu íntimo. Ora, o que parece almejar é discorrer acerca do ato de retratar qualquer que seja o tema, em um movimento que se volta sobre si mesmo, chamando atenção e proclamando, - por meio de precisas pinceladas mais espessas, ora usando o pincel, ora arrematando com a espátula, - que o sistema semiótico pintura é uma outra realidade.

Assim sendo, descobrindo seus próprios meios, ou seja, autodesvelando-se, em uma atitude que tem muito de crítica, no sentido de que a tela não mais busca ou salienta o que chamamos de tema, conteúdo ou significado. Vai valer pelo significante, pela forma, em movimento que se volta sobre si mesma. Ora, nada mais é do que aquilo que sempre foi a ontologia da Arte: há que mirar-se na forma, e não no conteúdo.

A obra do pintor Laércio Eugênio é um discurso que se pretende um “tratado de pintura”. Eis a tinta ocupando o lugar que seria do desenho, conformando um possível lugar de volumes quase sempre estáticos, reafirmando o que dissemos. É uma espécie de contemplar objetos isolados ou em conjunto, conduzindo o ato de pintar para engendramento de uma outra realidade, antípoda ao que chamam de real empírico, lugar onde sucede a interação entre os homens, seus objetos, seus sistemas de valores, suas maneiras de agir ou representar. E suportando todas as atribulações, sendo espécies de marionetes, em um eterno embate com as forças que nos chegam à nossa revelia, impondo mando e jugo.

Mas eis que temos a arte para nos redimir, uma dimensão outra perpetrada por uma singular presença no mundo, consignando contornos, inventando perspectivas, percebendo ângulos inusitados, alterando a ordem ditada pela Ideologia, fazendo-nos crer em uma possível outro jeito de pensar.

Enfim, o que de um imo singular emanou, dessa presença individual chantada nos logradouros da realidade, de um que ousou pensar diferente e tornou essa matéria em arte, eis a suprema capacidade de expressar uma pluralidade, um coletivo, uma etnia, um país, um dado momento histórico e o seu Ar do Tempo. Antes do mais, há que dizer que farei uso livremente das funções da linguagem propostas pelo linguista russo Roman Jakobson (1896 – 1982). Sua proposta das funções da linguagem é bastante dúctil, possibilitando que se analisem outros sistemas semióticos, não apenas a Língua.

O termo Linguagem amplifica-se a todo e qualquer fenômeno da cultura, sendo que à medida que houve uma evolução dos primeiros agrupamentos humanos de caçadores e/ou agricultores, a língua foi se impondo como um dos mais importantes meios de comunicação, dada a sua versatilidade e economia de paradigmas conformando um sintagma. Quer dizer, um reduzido número de fonemas é capaz de dar conta de línguas circunscritas a áreas geográficas ou etnias com o mesmo laço de parentesco. Mesmo assim, as artes visuais seguiram paralelas, organizando representações por meio de escrituras rupestres nos abrigos e cavernas, também em baixos-relevos sobre o granito, como se tivesse sido riscado pela mesma pedra.

Esses são apenas alguns exemplos. Para além da dimensão mágico-religiosa, havia a necessidade de expressão de um indivíduo à cata de inscrever fora de si uma outra realidade. Eis o que motiva o surgimento da arte enquanto fenômeno de cultura, da mesma forma o que impulsiona aos que, parece, sentem necessidade de cumprir determinada ordem vinda das regiões mais profundas do seu íntimo.

Esse conceito de Função Metalinguística empregaremos para analisar em uma perspectiva ensaística a obra de um pintor originalmente relacionada com o desenho, visto ter colaborado durante muito tempo como cartunista do jornal Gazeta do Oeste, tendo despertado para a pintura em 1988. Aqui já expusera seu talento em um desenho firme e detentor de uma dicção extremante criativa.

Separaremos, para fins didáticos, sua obra em três arranjos. As naturezasmortas, as paisagens e as marinhas. Suas naturezas-mortas detém características bem particulares, começando por manusear uma rica paleta de cores e seus respectivos tons. Expressa o pleno domínio da luz que esplende sobre arranjos de flores ou frutas isoladas, em um preciso sombreamento. A luz nessas telas assoma sempre de um ponto, maneira arguta e sensível de fazer com que o objeto em cena quedado proeminente, resplandecendo a luz que ilumina a composição retratada por meio da técnica expressionista: consistentes pinceladas que mais parecem ter sido feitas de chofre, como se não houvera previamente o desenho. Evoca uma espécie de pressa, no melhor sentido que possa haver. As grossas pinceladas sugerem mais um artista pleno no domínio de seus meios.

Tenho para mim, que os vasos de flores talvez sejam o que de melhor conseguiu fazer valer sua estética, em uma maestria capaz de lograr êxito a partir da sua experiência com as telas e os pincéis, demonstrando suas capacidades de imprimir uma hegemonia da cor sobre o desenho, em um despotismo de formas, cores e contornos capazes de desmistificar o retratado como lugar agradável e puramente decorativo.

O Expressionismo enquanto estilo histórico ou escola vinculada às vanguardas que surgiram no início do século XX, caracteriza-se por buscar a transmissão de emoções por meio de uma técnica muito parecida com uma forma abrupta de transmitir para a tela o real e seu entorno. Isso mesmo, uma espécie de pressa ao colocar em grossas camadas ou pinceladas, com espátula ou pincel, o que se apresenta ao olhar ou se movimenta no entorno do artista. Desse modo, alguns procedimentos empregados desde sempre são esquecidos. Basta ver como os vasos com flores estão muito mais do lado de insculpir emoções do que imprimir na composição um equilíbrio de formas ou procedimentos desde sempre buscados por escolas de pinturas do passado. Por isso, fomos buscar adjutórios, para efeito de compreensão, nas funções da linguagem. Essas telas referendam uma arte que se dobra sobre si mesma, como se quisesse testar o código.

Assim sendo, podemos inscrevê-la como uma arte metalinguística, na medida em que não busca retratar aspectos tendo em vista uma cópia da realidade, como por exemplo, a estética Realista, Romântica ou Acadêmica. Ao dobrar-se sobre si mesma, acaba por revelar o caráter de que estamos diante de um objeto no qual outorga um discurso de que não passa de uma composição, cuja organização cromática chama atenção para as possibilidades de se plasmar algo que pode até remeter a um referente do real, mas não se quer uma cópia deste.

As paisagens propostas por Laércio Eugênio também remetem ao que acima discorremos, no sentido de buscar a luz, sendo que aqui procura captar a luminosidade natural, quer seja nas praias, quer seja em ermas zonas, parecendo muito mais fruto da imaginação do que factíveis de existirem. Reforçando a ideia de recortes do real muito mais como desculpas para se elaborar o luzir claro de um possível sol e uma possibilidade de encetar contrastes entre cores e nuances que se opõem, como o azul, a terracota e o verde.

Com efeito, encontramos nas telas amplos céus azuis, conformados por meio de espessas pinceladas em diversos tons dessa cor. A perspectiva é conseguida quase sempre através de alguma nuance, não do desenho, que desaparece, para dar espaço e vida às cores que entram na composição. Sugere precisão e uma falsa urgência, pois sabemos que essa espécie de técnica requer tempo, silêncio e um olhar atento, distanciando-se, vez em quando, para saber a exata medida do que se está elaborando. Fica difícil não chamar atenção para a luz, com sua clara transparência, assim como se passasse direto, vinda do firmamento, não recebendo nenhum obstáculo. O artista consegue com destreza alcançar, com imensa propriedade, esse privilégio das zonas rurais ou de algumas cidades nordestinas.

Por fim, vejamos o virtuosismo do artista em dos seus temas principais, as marinhas. São detentoras de imensa beleza cromática, fazendo valer o que ousou e usou nas paisagens. Nada devendo a ninguém. Limita-se a engendrar suas telas, como pessoa um indivíduo discreto e sem nenhum vestígio de soberba, apenas transforma em paisagens marítimas as ordens que emanando seu interior. Esse mando e necessidade que forças da natureza demandam transformar em “energia” uma “dínames” (Aristóteles). Assim como se fosse uma imanência, algo que chafurda dentro de si, ansiando por se tornar Arte.

E com o pintor Laércio Eugênio, encontramos esse A no melhor sentido, de benfazejos objetos incorporados aos que o cotidiano já detém, sendo que na Arte, e sobretudo nas marinhas, há uma nova forma de contemplar a realidade, na medida que há um diferencial, pois refrata o que formos acostumados a ver ou o que nos dizem como ver.

Aqui há um novo projeto de vida: transmitir sentimentos por meio de uma determinada maneira, ou seja, de como se assenta a realidade no interior do artista. E assim ele transmite, por meio da sua pintura, as emoções que rebentam em seus músculos, ossos sangue, estrumando os cães adormecidos na sua alma, fazendo com que se transformem em uma outra realidade possível

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