Súdito fiel de Luiz Gonzaga. É assim que o mossoroense Marcus Lucenna se define. Radicado no Rio de Janeiro desde 1977, o cantor, compositor, cordelista e escritor está em sua terra natal para lançar a sua nova obra: “Marcus Lucenna na Corte do Rei Luiz”, que ele autografa na terça-feira, 7, no auditório da Estação das Artes Elizeu Ventania, às 17h.
O livro não é uma biografia do Rei Baião, mas um documentário da convivência do escritor com Luiz Gonzaga, e passa pela corte de Catulo Paixão Cearense, Zé do Norte e de outros nordestinos que inspiraram a essência da música nordestina e brasileira. Marcus Lucenna também está com o seu 16º álbum pronto, produzido por Daniel Gonzaga, neto do Rei do Baião, com o selo Celulla.
O cantador dos quatro cantos tomou o “Cafezinho com César Santos”, em longa conversa, que rendeu essa entrevista-documentário. Ele faz uma viagem ao túnel do tempo, revela como conheceu Luiz Gonzaga, explica a sua entrada para a política e fala, com orgulho, do título de cidadão exuense, terra de Gonzaga, conferido pelo presidente da Câmara Municipal de Exu, Jurandir Severo.
Marcus Lucenna, o cantador dos quatro cantos, como é que surgiu a marca?
Tem duas conotações. uma é geográfica mesmo, porque eu sou itinerante, eu sou aquele cara conhecido no país inteiro, apesar de não ter dado aquele estouro nacional. Eu digo que não tem uma cidade no Brasil que eu chegando lá não tenha, pelo menos, cem pessoas para ir no teatro me ver. Posso não ser o cantor das multidões, mas sou o cantor das multidinhas, ou seja, a gente é conhecido geograficamente. Eu viajei muito, trabalhei os quatro cantos do Brasil, então é o cantador dos quatro cantos porque fui aonde tinha pessoas para me ouvir. Aquele papo de que todo artista tem que andar.
E qual é a segunda conotação?
É do ponto de vista do repertório que eu gravo, porque apesar de eu ser visto como um cantor nordestino, forrozeiro, não canto só a música nordestina. Eu já gravei brega, eu já gravei lambada quando o Beto Barbosa estourou, cantei bolero, cantei tudo. Eu tinha filhos pequenos para criar, que hoje, graças a Deus, estão bem encaminhados. Eu precisava sustentar meus meninos e se ia vender um show de Marcus Lucenna diziam: aqui só tá dando lambada. Aí eu fui, assinei um contrato com uma gravadora, gravei um disco de lambada. Eu vendi muito disco, passei dois anos, onde Beto Barbosa cantava, eu cantava também. Inclusive, gravei uma música muito parecida com a de Beto Barbosa, com o mesmo refrão de adocica; eu dizia: “é a minha adocica”. Eu cantei lambada, cantei bolero, cantei forró, cantei brega, eu cantei tudo, justificando aí o cantador dos quatro cantos.
É o ecletismo que representa a alma do povo brasileiro e do latino-americano?
Exatamente, porque eu canto a música brasileira e a música latino-americana. Agora, o foco é Nordeste porque se eu cantar um tango, ao invés de botar um bandoneón, eu boto uma sanfona. Eu gravei rock, mas no meio do rock eu coloquei um sanfoneiro na banda conversando com as guitarras, entendeu? Sempre fiz isso, daí o cantador dos quatro cantos. Primeiro é a itinerância, depois o ecletismo.
O senhor se considera um súdito fiel de Luiz Gonzaga e como começa a sua história com o Rei do Baião?
Começa aqui em Mossoró, onde eu nasci. Nos anos 60, estourou a Jovem Guarda. Em 1965, ouvi Roberto Carlos pela primeira vez. Eu era um menino, mas recordo bem que Roberto Carlos foi o primeiro cantor que marcou a minha vida. O rádio também tocava Jerry Adriano e todos os outros cantores da jovem guarda, mas no meio tinha uma música que me chamou a atenção: “Cabra do cabelo grande...” (Xote dos Cabeludos, de Luiz Gonzaga). Aí eu disse: “caramba, tem uma briga aqui, tem as músicas que são a bola da vez, mas tem um véi dizendo que esse negócio aí prejudica, não é legal.”
O “véi” era Luiz Gonzaga...
Mossoró tinha três emissoras de rádio na década de 60, a Difusora, Tapuyo e Rural, que tocavam tudo, eram ecléticas. Eu ficava ouvindo Roberto Carlos, Moreira da Silva, mas tinha aquela voz estranha que sempre me chamava a atenção. Naquela época, Aluízio Alves (governador do RN) apoiava a campanha de Toinho Rodrigues (Antônio Rodrigues de Carvalho) contra Vingt-un Rosado, disputa do capim contra o touro. Meu avô apoiava os Rosado e a outra parte da minha família, do meu tio Danilo, apoiava os Alves. Tio Danilo era aquele do bordão “É o capim meu filho”. Aluízio criou as chamadas vigílias, que duravam três dias e três noites nas ruas de Mossoró, com o povo pobre nas passeatas com os garranchos nas mãos. Em uma dessas vigílias, botaram Luiz Gonzaga para cantar na periferia da cidade. Meu avô, que apoiava Vingt-un, chegou em casa e disse: “Marquinho, nós vamos na vigília, vamos encontrar do capim ali perto do prédio de zinco (antigo Cibrazem, no bairro Santo Antônio).” Eu perguntei: o senhor vai aderir e votar em Toinho Rodrigues? Ele disse: “Não, meu candidato é Vingt-un, eu gosto dele, ele apoia os artistas, é uma pessoa que representa as artes, mas vai ter um cabra lá que eu quero que você conheça. A parada da vigília foi na casa de um tal de Alfredo Bangu, um velho que promovia vaquejada e era fã de Aluízio Alves. Aí nós fomos, nós ficamos escondido atrás da parede de um açude para ver de longe o showmício. E eu vi seu Luiz Gonzaga, pela primeira vez, escondido, de muito longe, ele com aquela roupa bonita, aquela voz fanhosa que batia na parede do açude e voltava. Eu fiquei com aquilo na cabeça e quando eu cheguei em casa eu disse pra minha mãe: “Quando eu crescer, quero fazer isso que esse véi faz, e assim representar meu povo nordestino. Isso ocorreu em 1968, eu conto no livro “Marcus Lucenna na Corte do Rei Luiz”.
E o primeiro contato direto com Luiz Gonzaga, como aconteceu?
Em 1970, eu fui estudar em Recife (PE), fiquei morando na Praça Maciel Pinheiro onde tinha um hotel muito famoso chamado São Domingos, e seu Luiz hospedava lá. Eu vi seu Luiz saindo do hotel com algumas pessoas, desci para falar com ele, fui ousado. Ele me disse: “vai ser doutor quando crescer” e me abençoou, e eu falei: “vim pedir a benção do senhor porque não é todo dia que a gente encontra um rei.” Quando eu saí dali já não queria mais ser doutor, ou podia até ser doutor, mas queria ser cantador. Em 1977, eu estava indo embora, de menor idade, fui no rumo de seu Luiz. Dei sorte de chegar no Rio de Janeiro e me tornar próximo da família dele. Aliás, dei sorte de ficar próximo dos nordestinos importantes como João do Vale, Marines, Abdias, Luiz Wanderley e outros que muita gente nem conhece, o que é uma pena. Luiz Vanderlei era um cara genial, ele fez o Coronel Antônio Bento, que não é Coronel Antônio Bento, é Matuto Franziado, que foi gravado originalmente por ele, depois curtida por tudo mundo. Peço para quem ler o meu novo livro, pesquisar mais a vida dessas pessoas. Chegando no Rio, terminei me enturmando com a família dos Gonzaga. Seu Luiz não morava mais no Rio, morava no Exu (PE), mas visitava o Rio periodicamente; quando chegava era muito bom porque eu sendo amigo dos sobrinhos dele, dos irmãos, das irmãs, a gente fazia uma festa. Então, ficaram essas memórias todas e essas amizades com a família Gonzaga que me trouxeram até aqui.
De que forma a influência de Luiz Gonzaga impactou a sua carreira de cantador, como essa descoberta entrou em sua vida?
Luiz Gonzaga entrou na minha vida muito cedo e ficou nela até ele morrer. Eu fui o único artista brasileiro que abraçou seu Luiz no cinquentenário de sua carreira. Não houve nenhum grande evento. Você pode pesquisar, não vai encontrar nenhum grande evento para celebrar a data. A Globo ainda botou seu Luiz para cantar, fez um documentariozinho, mas não teve o prestígio de Roberto Carlos, que cantou em Israel e no mundo inteiro nos cinquenta anos de carreira dele. Como seu Luiz não teve uma festa pra ele, eu fiz um cordelzinho, foi o segundo cordel da minha vida. Eu não fazia tanto, mesmo sendo filho de poeta, cantador e cordelístico, o Major Lucenna, mas resolvi dar esse presente para seu Luiz. Foi o reconhecimento de tudo que ele representa na minha vida, desde menino quando ouvi no rádio e aquilo influenciou a minha carreira e tudo que sou hoje.
Essa ligação, afetuosa e histórica, vai lhe render o título de cidadão exuense, na terra de Luiz Gonzaga. Qual o sentimento que esse reconhecimento proporciona?
Eu sou muito respeitado pela família de Luiz Gonzaga. Meu disco novo, que está sendo lançado agora, é produzido pelo Daniel Gonzaga, filho de Gonzaguinha, neto de seu Luiz. O título de cidadão exuense é uma realização, orgulho e gratidão que levarei para sempre. Desde jovem eu frequento Exu, devido a essa minha relação com a família de seu Luiz, eu terminai me afeiçoando à cidade.
Fale um pouco sobre a obra Marcus Lucenna na Corte do Rei Luiz...
Esse livro não é uma biografia de Luiz Gonzaga, é Marcos Lucenna na Corte do Rei Luiz. Eu situo seu Luiz numa corte que começou a ser formada antes dele existir como sucesso, porque a corte nordestina começa a se formar a partir de Catulo da Paixão Cearense, quando o nordestino canta nos salões da nobreza do Rio de Janeiro, muito antes de seu Luiz Gonzaga. Quando seu Luiz chegou no Rio, tinha um cara chamado Zé do Norte que era filho de Ricardo do Nascimento, daqui de Cajazeiras (PB), que fez história, apesar de ninguém mais falar sobre ele. Seu Zé fez a trilha sonora do Cangaceiro e a música do Cangaceiro foi globalizada. Foi a primeira música brasileira globalizada. Certa vez, o prefeito Dix-huit Rosado (três vezes prefeito de Mossoró, falecido em 1996) me chamou para conversar, porque eu gravei uma música da trilha Soldado “Meu Bem Sobrado”, e ele contou que estava no Japão e sentiu-se orgulhoso ao ver longa fila no cinema para ver o filme com a história do nosso povo e com a trilha sonora nossa. Então Zé do Norte globalizou a música nordestina e brasileira, porque naquela época não existia música brasileira tocando no mundo. Só em Paris, na França, o Cangaceiro ficou cinco anos em cartaz. Seu Zé do Norte foi buscar Luiz Gonzaga no Mangue, ele cantava com pires para o povo botar uns trocados. Seu Luiz foi o primeiro pau de arara que botou a voz no ar no Rio de Janeiro, na emissora que depois virou Rádio Globo. Eu cito assim, Catulo e Zé do Norte, a corte se formando, e aparece o cara sortudo com a estrela do tamanho do mundo que é seu Luiz. Essa corte nunca parou de crescer.
Quais as lembranças que o senhor guarda de Luiz Gonzaga, como pessoa, como ser humano, que vai além do talento?
Seu Luiz era uma pessoa de coração muito generoso. Ele andava com uma mala, naquele tempo chamava surrão, cheia de dinheiro, cheia de patacas, para dar aos mais necessitados. Se ele chegasse aqui, se meu sapato tivesse ruído de um lado, ele dizia: você é o cantor, não pode andar com isso, e discretamente colocava dinheiro no meu bolso para eu comprar um sapato novo. Sanfona nem se fala, ele doava aos sanfoneiros que não tinha condições de comprar o instrumento. Seu Luiz marcou a vida dele pela generosidade e é por isso que ele nunca vai ser esquecido.
O senhor cruza a sua trajetória cultural, a sua arte, e envereda pela política partidária no Rio de Janeiro. Por que essa opção na sua vida?
A minha atividade principal é cantar, compor, escrever livros. Em 1989, eu gravei o meu primeiro álbum, também havia escrito um cordel, um filãozinho para ganhar mais dinheiro. Sempre vivi bem no Rio, nunca passei necessidade, a minha arte sempre garantiu uma boa situação. Trabalhei apenas duas vezes com carteira assinada, uma delas foi no fundo do Rio de Janeiro, um banco do desenvolvimento que tinha dentro da Prefeitura pra captar recursos de grandes bancos internacionais para investimentos na cidade. Eu elaborava programas institucionais voltados pra questões econômicas, mas também voltado para os nordestinos que moravam no Rio. Aí que a política entra na minha vida. Eu escrevi um cordel para Betinho (sociólogo Herbert José de Sousa, falecido em 1977) que estava retornando do exílio e fundou o Instituto Brasileiro de Estudos Econômicos Sociais. Naquele momento, começou a aparecer casos de Aids, que era chamado de “câncer gay” e ninguém sabia o que era direito. A instituição decidiu fazer uma campanha de orientação e prevenção nos canteiros de obras, onde era grande a incidência da doença em razão dos trabalhadores não terem conhecimento sobre o assunto, por isso, as relações promíscuas. Através do fundo da Associação Brasileira Interdisciplinariais, em parceria com o Sindicato da Construção Civil, foi realizado um concurso para escolher um cordel que seria a campanha de conscientização e prevenção à aids. Eu ganhei, superando cordelistas de todo o País, que escreveram cordéis com alto grau de preconceito. Eu me lembro do meu pai, Major Lucenna, escreveu assim “...aí ele chegou matando bicha de tudo que é qualidade...” Eu fiz uma coisa mais respeitosa, que tinha o verso que diz: “... um chamego por detrás é mais perigoso, amigo; não porque seja pecado, nem porque seja castigo, mas por ser mais apertado, facilmente é machucado, e aí, mora o risco. Eu abordei de uma maneira muito engraçada e sem preconceito. Caí nas graças da indústria da construção civil e meu disco veio alavancado, a ponto de representar um segmento, o que me colocou na política. Fui candidato a deputado federal em 2010, acreditava que seria eleito, mas, como se sabe, quem tem mais estrutura acaba vencendo, e terminei não entrando.
O senhor pretende ser candidato outra vez, em 2022, o que o faz pensar que será diferente?
Eu vou ser candidato pelo PSB, antes fui afiliando por longos anos ao PCdoB. Na primeira vez que fui candidato, eu queria aprender, eu gosto do aprendizado. Nas eleições de 2010, eu imaginei que poderia dar sorte porque na eleição anterior, em 2006, a nossa puxadora de votos, Jandira Feghalli (PCdoB), tinha recebido 300 mil votos, então, a sua votação poderia me ajudar, como ajudou a candidatos de esquerda em 2006. Se ela repetisse a votação, eu ganharia, mas isso não aconteceu. Eu acho que agora, em 2022, do ponto de vista eleitoral tenho uma chance. Acredito que será possível ganhar um mandato na Câmara dos Deputados.
Por quê?
Eu troquei de partido, saí do PCdoB para o PSB. Eu sou muito sincero, a mudança partidária que fiz foi por questão eleitoral mesmo, acho que no PSB as minhas chances são maiores. Sei que as dificuldades serão grandes porque o Rio de Janeiro é berço do bolsonarismo e eles batem muito pesado nos candidatos de esquerda. Mas, vamos à luta, não vamos perder tempo explicando a diferença do focinho do porco para a tomada. Eu aprendi muito. O PSB é um partido forte, terá uma nominata interessante. Temos a liderança do Alessandro Molon que é muito respeitado no Rio. Eu sou presidente do partido em Miguel Pereira, o que me dá uma motivação a mais. Essa será, talvez, a minha última tentativa de ganhar um mandato eletivo, por isso, eu quero ir pra o parlamento grande, para Câmara dos Deputados, onde eu possa contribuir para o meu País. Se eu não eu tiver sucesso nas urnas em 2022, vou me aquietar e vou fazer política através das minhas ações culturais e artísticas.
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