Por Camila Alves – GE
Vagner Silva de Souza acostumou-se a lidar com o improvável. Cria dos campos de terra batida do Bangu, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, carregou consigo o simples sonho de ser atleta profissional no futebol. Entre o deslumbre e a pouca idade, transformou o próprio nome quando ainda jovem e precisou contrariar críticas, descrença e desconfiança - após despontar marcado por um ato de indisciplina nas categorias de base.
Virou Vagner Love, o artilheiro do amor.
Ou melhor... o artilheiro de gols, multicampeão e centroavante insaciável - mesmo após duas décadas em campo, e agora no auge daquela que se tornou principal motivo de discriminação: seus 39 anos de idade.
"Será que vai vir para fazer alguma coisa? Ou vai vir para roubar o Sport?", questiona Vagner Love, imitando o que ouvia de críticas sobre si mesmo.
As críticas foram derrubadas com maestria em menos de um ano na Ilha do Retiro. No aniversário de 39 anos e como artilheiro mais velho da Série B do Brasileiro - duas décadas após levar o título em 2003 -, Vagner Love comprova: acostumou-se a contrariar o improvável. E não seria diferente agora.
“Ganhar dinheiro, eu já ganhei. Estou aqui para fazer história. Para ganhar títulos, deixar um legado e o que eu aprendi passar para os mais jovens. Esse é meu pensamento”.
MAS POR QUE O SPORT?
Negado por Lisca no próprio Sport por conta da idade, Love acertou com o clube rubro-negro semanas após a demissão do técnico, e com a chegada de Claudinei Oliveira - que rapidamente o aprovou. Competitivo, o centroavante diz que escolheu o Leão por ambição: queria brigar por algo.
Foi campeão pernambucano e vice da Copa do Nordeste na Ilha do Retiro, ao mesmo tempo em que transforma a cidade em nova casa.
Ao lado da esposa Lene e da filha Alice, de sete anos, as quintas-feiras são sagradas: é a noite do Japa. Entre as folgas esporádicas, arroz e feijão são o prato favorito, mas uma comida italiana, um churrasco ou mesmo risoto também entram no cardápio - e sempre que pode, um pudim de sobremesa. É a preferência da casa.
“Não sou de comer doce, mas de vez em quando eu me permito... É bom comer um pudinzinho”.
Sem tempo para as praias neste ano e requisitado por onde passa, é assim - através da culinária - que Love desfruta a vida no Recife. Adepto dos restaurantes, descobriu na capital mais dois pratos para incluir no cardápio.
“Eu comi cartola, o doce tradicional daqui. Cara, que delícia. E a outra é patola de caranquejo. No Rio eu como caranguejo, siri, mas a patola aqui é diferente. Já comi à milanesa, com molho, todas as variações”, brinca Love, lembrando do que provou com a família desde que passou a viver no Nordeste.
As escapadas na alimentação são esporádicas. Até porque, desde 2015, Love percebeu que poderia jogar quanto tempo quisesse - bastava se cuidar. Passou a adotar um cardápio regrado, com descanso adequado e treinos mesmo nos períodos de intertemporada. Foi a esposa, Lene, aliás, uma das principais incentivadoras nesta mudança.
“Eu dificilmente treinava nas férias, mas quando comecei a ficar com ela, até no resort leva a roupa de academia. Virou costume. Não tenho mais 20 anos, metabolismo é outro”, diz o centroavante, que surpreendeu pela forma física apresentada.
A DECEPÇÃO
Os ensinamentos de duas décadas de carreira começaram quando Love se chamava apenas Vagner. Passou pelo futebol do Bangu, depois no Campo Grande e por fim no Vasco - aprovado em um teste quando tinha 12 anos de idade. Sem condições de pagar as passagens até São Cristóvão, saiu de casa pela primeira vez e passou a viver no alojamento do clube.
Por lá ficou até 1999, quando viveu a primeira grande decepção da carreira.
“Eu fui mandado embora do Vasco. Disseram que eu era muito pequeno. Só que sempre tive qualidade e nunca desisti pelo meu tamanho. Se fosse desistir pelo tamanho, Messi não estaria aí, Romário, e muitos outros que são craques e não tem a estatura muito alta”.
“Foi uma decepção para mim, ser mandado embora do Vasco. Eu falei para minha mãe que ia parar de jogar”, confessa.
Vagner realmente desistiu da carreira – ainda que de forma momentânea naquele período. Matriculou-se em uma escola de Bangu e voltou a estudar, ainda sem perspectivas sobre o que queria para o futuro. Até que conheceu Evandro – um rapaz que dava treinos para jovens jogadores em Pedra de Guaratiba, no Rio de Janeiro, e tentava inseri-los na base dos clubes.
Entre a busca por oportunidades, Vagner tinha 16 anos quando entrou em um ônibus a caminho de São Paulo para fazer um teste no Morumbi. Tinha apenas a passagem, poucas roupas na mala e R$ 50 na mão, dados pelo empresário, para pegar um táxi da rodoviária ao estádio. Não contava, entretanto, com a distância e o pico de trânsito na capital.
“O cara ligou o taxímetro e foi, só que chegou um momento que olhei: R$ 46. Falei amigo, não tenho mais dinheiro, para aqui eu vou descer e me viro andando. O cara olhou: fica tranquilo, vai virar essa rua e vai chegar no Morumbi”.
“Sobrou quatro reais, ainda consegui comer um cachorro quente depois”, conta Love aos risos.
Assim, Vagner conheceu seu primeiro e único empresário, com quem trabalha desde os 15 anos e até hoje - com 39 recém-completos. Ele ainda permaneceu no São Paulo por cinco meses após o teste, mas não teve o contrato firmado, e terminou indo para o Palmeiras - onde virou profissional, transformou o próprio nome e iniciou uma carreira histórica no futebol.
‘Ela me ensinou ser simples’, diz Love sobre a mãe
Entre 14 clubes, mais de 20 títulos e até taças com a seleção brasileira, Vagner Love sempre guardou a mãe como principal apoio. Foi Dona Jaira – como é conhecida – quem incentivou o sonho de criança, manteve-se presente – mesmo distante – e ensinou uma lição que o filho carrega até hoje: ser simples.
“Minha mãe me ensinou e eu procuro manter isso na minha casa, para os meus filhos. Ganhei dinheiro, vou comprar logo um carrão? Não. Vou comprar uma casa para minha mãe. Depois para minha irmã, para meu pai”, conta Love.
“Até brinco: não morri ainda não, mas para cada um dos meus filhos, eu dei um imóvel. Eu falo: se acontecer qualquer coisa, pelo menos o teto vocês têm”, conta o centroavante.
PRIMEIRO BICHO
O sonho da casa própria sempre esteve presente nos pensamentos de Vagner Love. Antes mesmo dos filhos, investiu o primeiro dinheiro – ainda no Palmeiras – para dar uma casa à mãe em Bangu e usou o primeiro "bicho" - premiação por classificar o CSKA à Champions – para comprar uma nova, no Recreio – bairro nobre do Rio.
O episódio, aliás, rende risadas de Vagner e Dona Jaira até hoje. “Nunca tinha visto tanto dinheiro na minha vida. Eram 70 mil dólares. Botei na bolsa e me tremia, fiquei desesperado, agarrei a bolsa e não largava de jeito em nenhum”.
“Cheguei em casa, chamei minha mãe no quarto e joguei o dinheiro em cima da cama. Ela gritou: "ai meu deus, você roubou isso meu filho". Na hora foi superengraçado a cena. Depois eu falei: com esse dinheiro vou comprar uma casa para senhora, com piscininha, churrasqueira, e ela está até hoje nessa casa”, lembra o atleta.
Dona Jaira, inclusive, tornou-se motivo de escolha para aquele que Love considera como o título mais importante da carreira: a Copa da UEFA de 2004/05, pelo CSKA – atualmente conhecida como Liga Europa.
“Nesse jogo minha mãe estava no estádio. Se torna mais especial. Tive outros títulos maravilhosos, mas o fato da minha mãe estar no estádio, foi especial”, confessa.
O mais comemorado, por sua vez, aconteceu naquele mesmo ano: a Copa América de 2004 – primeira taça de Love com a seleção brasileira, diante da Argentina e nos pênaltis, após Adriano Imperador marcar nos minutos finais para empatar. “Nunca comemorei tanto como comemorei aquele gol do Didico”
Após duas décadas em campo, mudaram os sonhos, as prioridades, os cabelos – que saíram das tranças para a careca marcante –, mas escolhas – se Vagner pudesse voltar 30 anos atrás – seriam as mesmas.
“Tem minhas coisas erradas que fiz ao longo do caminho, mas me deram aprendizado. Eu falo que não mudaria nada”, disse.
Love repassa a própria história em mais de uma hora de conversa, ao longo dos 30 km que separam sua casa, em Boa Viagem, do centro de treinamento do Sport. Na chegada ao destino, recebe um bolo na comemoração dos 39 anos de idade – recém-completos no domingo. O pedido?
“Mentalizei. Não pode falar não. A gente sempre tem sonhos, sempre tem coisas para realizar”, confessa.
Pensativo, Vagner Love agradece. Segura o bolo com as duas mãos, sorri e sinaliza os próximos passos, a caminho do espaço que – em menos de um ano – transformou em casa. “Vou dividir com a rapaziada no lanche. Meus companheiros merecem”.
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