Por ge
O Botafogo, indiretamente, se tornou um dos pivôs de um debate que pode provocar mudanças radicais no futebol argentino. O sucesso esportivo do clube desde que adotou o modelo SAF (Sociedade Anônima de Futebol), sob o comando de John Textor, é um dos argumentos utilizados pelo Estudiantes e pelo presidente da Argentina, Javier Milei, para tentar que a AFA (Associação do Futebol Argentino) permita a entrada de investidores estrangeiros no país.
Estudiantes e Botafogo se enfrentam às 21h30 desta quarta-feira no Estadio Jorge Luis Hirschi em jogo da 3ª rodada da fase de grupos da Conmebol Libertadores.
A realidade do futebol argentino é bem diferente do cenário do Brasil, que conta cada vez com mais investimento. Enquanto o Flamengo faturou mais de R$ 93 milhões com a conquista da Copa do Brasil no ano passado, o Vélez, último vencedor da Copa Argentina, levou US$ 500 mil (cerca de R$ 5 milhões.
Juan Sebastián Verón, presidente do Estudiantes, é um dos principais apoiadores das SADs (Sociedades Anônimas Desportivas), o equivalente às SAFs na Argentina. O clube de La Plata tem um pré-acordo desde o ano passado para receber aporte de US$ 120 milhões (R$ 698 milhões na cotação atual) do empresário Foster Gillett, mas a questão não avançou por causa das regras da AFA. Filho de George Gillett, ex-dono do Liverpool, ele entraria em uma sociedade mista com o clube, sem que o Estudiantes tenha que dar os seus bens como garantia.
— O Estudiantes tem que convocar uma assembleia de sócios, mas ainda não tem nada definido com Foster Gillett. Ele prometeu mais de 120 milhões de dólares, que seria, usados para infraestrutura e compra de jogadores. Ele prometeu avançar na ampliação do estádio, obras no CT... Tudo isso está nas mãos do Verón, mas ele nunca chamou a assembleia de sócios para referendar esse pré-acordo porque há um medo de que Foster Gillett possa não cumprir com tudo que prometeu. O Estudiantes pediu um tempo em busca de garantias - explicou Claudio Cardoso, setorista do Estudiantes na Cadena 3, ao ge.
Na Argentina, é comum que os clubes pertençam aos sócios e, assim, os times não podem existir como empresas. River Plate e Boca Juniors, por exemplo, têm mais de 300 mil associados. A cultura e o contexto do país são diferentes se comparados com o Brasil: no país vizinho, as instituições de futebol são encaradas como um local de pertencimento.
Consequentemente, qualquer mudança no estatuto do Estudiantes para uma eventual mudança no modelo para SAD terá que passar pela anuência dos sócios. O clube tem mais de 55 mil associados registrados.
— O principal obstáculo para a entrada da SAF na Argentina é cultural. Para fãs argentinos, clubes associados e apoiadores. Não há proprietários ou empresas donas de clubes, mas haverá gestão temporária por um representante. Se algo acontecer, levará tempo: não se trata apenas de abrir a economia sem superar essa barreira cultural. O argentino não pensa no clube como um negócio: não busca lucro financeiro sem ser campeão e continuar existindo, mas mesmo assim sai perdendo. Os investidores são vistos como uma grande oportunidade, pois podem trazer jogadores e melhorar as instalações, mas entende-se que eles buscam lucros e, quando não os obtêm, investem em outro negócio, deixando tudo em ruínas, como já aconteceu em outros países - explica o jornalista argentino Fernando De Dios.
A "revolução Estudiantes"
Javier Milei é favorável à entrada do capital estrangeiro nos clubes do país. Ele trava uma batalha com a AFA, que não apoia e proíbe a medida em seu estatuto. O presidente da República tentou um decreto em dezembro de 2023 para permitir a participação de investidores no painel dos times argentinos, mas a questão não foi aprovada pela federação.
Em agosto de 2024, o presidente argentino decretou que “qualquer direito de uma organização desportiva não pode ser impedido, privado ou prejudicado em razão de sua forma jurídica, seja uma associação civil ou uma corporação, desde que seja reconhecido por lei”.
Esta medida, porém, vai contra regras da Fifa, que não permite a intromissão de governos no regulamento de federações e nas normas colocadas nos próprios países. Se Milei insistisse, a entidade máxima do futebol poderia punir até a seleção argentina por descumprimento das regras do esporte.
O Estudiantes, então, dribla as regras como pode para tentar ser bem-sucedido e competir. É aí que entra Foster Gillett. O empresário foi chave na compra de Cristian Medina, uma das principais revelações do Boca Juniors nos últimos anos, para o time de La Plata. O jogador, inclusive, esteve na mira do Botafogo em dezembro de 2023.
Medina no Estudiantes — Foto: Estudiantes
— Falar sobre abertura ao capital estrangeiro não é novidade na Argentina, e muitas promessas e sonhos não deram em nada devido à instabilidade política. Os argentinos, não apenas os fãs, são muito desconfiados e não acreditam até verem as coisas acontecerem. Há também muito ceticismo sobre investidores estrangeiros que buscam o lucro máximo em um curto espaço de tempo e vão embora quando os ventos mudam. Mas o clube sempre estará lá, e os fãs querem segurança a longo prazo: além da capacidade de ganhar um campeonato, a certeza de saber que seu clube não vai desaparecer é mais valiosa - completou Fernando.
Gillett empresário pagou, do próprio bolso, a multa rescisória de 15 milhões de euros do meio-campista em janeiro deste ano. Após tudo assinado, o americano passou os direitos federativos do atleta para o nome do Estudiantes. O acordo entre ele e Verón diz que o grupo de Foster Gillett ficará com parte do lucro de uma eventual venda futura.
Nem tudo são flores. Apesar de ter comprado Medina, Foster Gillett não conseguiu concretizar duas negociações que chegaram a ser dadas como certas no início do ano: a ida do volante Villagra do River para o Estudiantes e a transferência do zagueiro Gómez do Vélez para a Udinese. Os clubes argentinos não receberam o pagamento de Gillett, e o River chegou a denunciar criminalmente o empresário.
Botafogo como inspiração
O título da Libertadores de 2024 conquistado pelo clube carioca no Monumental de Núñez, em Buenos Aires, é um dos argumentos utilizados por Milei para defender a chegada de investidores à Argentina.
Após a final do ano passado, disputada contra o Atlético-MG, outro clube com o modelo SAF, Javier Lanari, subsecretário de imprensa de Javier Milei, afirmou que o sábado foi um "péssimo dia para ser anti-SAD".
— O caso do Botafogo é incrível. Há três anos estava falido, jogou na segunda divisão. Um empresário americano comprou 90% e investiu US$ 70 milhões. Hoje são campeões da Libertadores. Nada mais deprimente do que assistir à final da Libertadores entre duas equipes brasileiras pela TV. E, também, na Argentina. Eu completo o combo. Péssimo dia para ser anti-SAD — publicou Lanari.
John Textor Botafogo Libertadores — Foto: Agustin Marcarian/Reuters
Um time argentino não é campeão da Libertadores desde 2018, quando o River Plate derrotou o Boca Juniors na final. Desde então, apenas brasileiros levantaram o principal troféu do continente e ocuparam 10 das 12 vagas nas seis decisões seguintes.
— A principal barreira é cultural. Depois claro, a economia instável da Argentina não é a melhor para investimentos mas é uma grande possibilidade devido o talento dos jogadores argentinos e a capacidade de exportar jogadores - finalizou Fernando.
O Botafogo, por exemplo, investiu quase R$ 500 milhões apenas na primeira janela da temporada e teve negócios como as compras de Wendel (20 milhões de euros ao Zenit) e Santiago Rodríguez (US$ 15 milhões ao New York City). Na Argentina, o negócio mais caro foi justamente a contratação de Medina para o Estudiantes.
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