Por Telmir de Souza Soares
Há uma frase muito pungente que assevera que “nenhum pai deveria enterrar o próprio filho”. Um evento devastador como esse seria algo contra a natureza, uma vez que os pais, por mais que perdurassem, deveriam, segundo a ordem das coisas no nosso mundo imaginário, falecer antes dos filhos, cabendo a estes enterrá-los. Segundo esse pressuposto, os filhos nascem, desenvolvem-se, crescem e com eles crescem e amadurecem os pais. É um movimento de tempo simultâneo, de tal forma que os filhos, quando velhos, estariam maduros para cuidar dos pais e vê-los, finalmente, descansarem.
De hoje em diante, depois da morte de nosso caríssimo amigo Philipe Villeneuve, consideramos que essa frase deveria ser adaptada para outras situações e condições que não sejam a de pai ou de mãe, exclusivamente. Certamente não há que se pensar na igualdade entre dores tão profundas, se bem que a dor de cada pessoa é a dor de cada pessoa, incomensurável. Entretanto, estamos nos referindo a outras pessoas e outras profissões que comportam tais dores em função de determinadas perdas. Estamos falando daquelas pessoas e daquelas profissões que professam de forma irremediável uma paixão da alma, a paixão de lidar com os filhos que são de outros, tomando-os como se fossem nossos, num processo de acompanhamento, crescimento e, finalmente, descanso semelhante aos dos pais. No nosso caso, falamos na condição de professor, assim, “nenhum professor deveria ‘enterrar’ um aluno”.
Professores existem em função de seus alunos. Em seus alunos os professores encontram a razão de ser deles, de seus sonhos e desejos. Existem alunos nos quais os professores se reencontram em suas próprias histórias em um tempo perene: no tempo do passado, quando tudo é luta para terminar um curso como assim o fizeram; no tempo presente, nas lutas travadas para se constituir profissionalmente, dar significado ao curso recém-terminado e na busca por encontrar um espaço no mercado de trabalho e, por fim, no futuro, quando os projetos do discente começam a dar frutos e, finalmente, eles ultrapassam o docente, demonstrando a atualização das suas potências, realizando toda a admiração que o professor devotava ao discente. Philipe Villeneuve estava traçando esse percurso, em meio ao qual surgiu, na relação docente e discente, uma aprofunda amizade e uma genuína admiração por tudo que ele viria a realizar.
Philipe nos mostrava a genuína alegria em cada encontro, expressa num sorriso emoldurado pelo aparelho dentário. O abraço apertado, indicando tanto a proximidade da amizade quanto o distanciamento gerado por uma saudade imediata, por não termos tido nesses tempos tempo para estarmos mais próximos como gostaríamos. Toda despedida era o prenúncio de uma saudade e da vontade de que o próximo encontro se desse o mais breve possível. Mas eis que Philipe se foi...
Pensando sob uma ótica diferente, a da presença e a do agradecimento, foi infinitamente bom ter conhecido alguém tão especial. Infelizmente, a causa mortis principal da condição humana é a vida. Estar vivo é a condição de possibilidade da morte. Não há morte sem vida, nem vida sem morte. Essa é a mais dura de todas as realidades que nos cercam. Enterrar um filho, enterrar um aluno só acontecem porque algo se deu anteriormente, uma presença que se expressa muito mais pela existência do que pela ausência.
Ter nutrido sonhos e esperanças de curto e longo prazo junto a Philipe Villeneuve e, principalmente, sobre a vida dele fazem todo o sentido dado o sentido da nossa profunda relação de afeto nascida pelo amor à filosofia. Muitas dessas esperanças e projetos se realizaram até o dia de hoje e todas foram muito preciosas. Philipe se formou em Licenciatura em Filosofia e me deu a alegria de estar na sua banca de Conclusão de Curso. Ele também se tornou Padre e assumiu, mediante toda sua competência e esmero, muitas responsabilidades que somente ele poderia realizar a contento de uma forma tão especial. Assim, mesmo as lágrimas que nos sobrevêm, nada teria sido se Villeneuve não tivesse acontecido. Foram muitos anos de relacionamento fraterno e acadêmico. Talvez, na nossa escala de tempo, tenham sido poucos esses anos. Mas o que é o tempo, de fato? Esse tempo breve sob a terra foi infinito em termos de profundidade, anos que nos fazem, hoje, sermos um pouco mais felizes por essa terna saudade que agora habita em nós.
Na última vez que vimos Philipe, tivemos a oportunidade de andar juntos meio quarteirão. Na verdade, eu o acompanhei porque ele tinha pressa. Era noite. Aparentava cansaço e indicava que tinha ainda algumas coisas a tratar. Andei com ele sabendo que meu destino estava na direção oposta, mas eu queria saber novidades. Despedimo-nos e voltei ao ponto em que tínhamos nos encontrado. Desejei no meu coração toda a felicidade do mundo para ele. Sua partida em definitivo, a despeito de tudo que compartilhamos, deixou-nos um pouco mais solitários nesse mundo tão vasto. Perdemos um aluno, perdi um amigo, perdemos o compartilhar de novos sonhos, perdemos alguém que era, para nós, alguém de casa. Se há algo que nos consola nesse momento inconsolável é saber que agora, finalmente, Philipe vai poder descansar. Vimos isso no último sorriso que imaginamos ter visto na face dele, enquanto todos se despediam, na Catedral de Santa Luzia, e isso nos deixou saudosamente consolados.
(*) Telmir de Souza Soares - Dr. em Filosofia, professor do Departamento de Filosofia da UERN
Diocese de Mossoró perdeu o seu mais jovem sacerdote
Padre Philipe era o mais jovem sacerdote da Diocese de Santa Luzia de Mossoró. Tinha apenas 27 anos quando o seu coração parou de bater na noite desta terça-feira, 2. Uma perda que abalou a comunidade católica de Mossoró e de toda a região Oeste do Rio Grande do Norte, dada a empatia e a boa convivência do jovem religioso com toda a sociedade.
O jovem Philipe Villeneuve Oliveira Rego foi ordenado sacerdote da Igreja Católica em 4 de agosto de 2023, no Dia do Padre, por dom Mariano Manzana (hoje bispo Emérito). A solenidade ocorreu no adro da Matriz de Nossa Senhora da Conceição, na cidade de Pau dos Ferros, a sua terra natal.
Apesar de jovem, padre Philipe ocupou funções importantes na Diocese de Santa Luzia em sua breve vida religiosa. Ele era o vice-reitor do Seminário Santa Teresinha, diretor Pedagógico do Colégio Diocesano Santa Luzia (CDSL) e diretor da FM 105 Santa Clara. Essa última função ele ocupou para suceder o padre Sátiro Cavalcanti Dantas, falecido em 27 de novembro de 2023.
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