O Ministério Público Federal (MPF) ingressou com uma ação civil pública pedindo anulação do decreto 9.814/19 do Governo Federal, que tornou de interesse social a exploração de salineiras no Rio Grande do Norte. Argumenta que o Governo autorizou o funcionamento de salinas em áreas de preservação permanente (APPs), baseado em “motivo falso e desrespeito às leis ambientais”. A ação inclui um pedido liminar para suspender o decreto e destaca os riscos para o ecossistema, caso a nova regra seja mantida em vigor.
Segundo o MPF, estudos técnicos apontam que aproximadamente três mil hectares de áreas de preservação permanentes (sobretudo manguezais) são ocupados irregularmente por salineiras no RN. No início deste ano, o MPF já havia patrocinado ações contra 18 empresas do setor, pedindo a remoção da produção de sal das APPs para outras áreas e a recuperação dos espaços degradados. Para minimizar os impactos financeiros do setor, sugeriu um prazo de até oito anos, nos quais os proprietários poderiam planejar e concretizar essa realocação.
Os salineiros contestaram a ação do MPF, apresentando argumentações técnicas e econômicas. As entidades que representaram a indústria salineira afirmaram que não havia risco ou agressão ao meio ambiente, e que a insistência do MPF estaria condenando uma das mais importantes atividades econômicas da região de Mossoró e do RN.
Com apoio da bancada federal, a indústria salineira conseguiu sensibilizar o presidente Jair Bolsonaro, que, em 4 de junho deste ano assinou o decreto concedendo o status de interesse social à atividade salineira, o que possibilita que as empresas sigam a extração de sal na região. Também uma lei municipal, de autoria da vereadora Sandra Rosado (PSDB), reconhece o sal como um bem de interesse social.
De acordo com a ação civil pública de autoria do procurador da República Emanuel Ferreira, o decreto do Governo Federal não leva em consideração que há alternativas técnicas.
Emanuel Ferreira cita que, de acordo com a lei 12.651/12, interesse social pode ser declarado em atividades diversas “quando inexistir alternativa técnica e locacional à atividade proposta”. No caso das salineiras potiguares, a realocação da produção é uma possibilidade, tendo em vista que apenas 10,7% da área ocupada pelas empresas se encontra em APPs, “ao contrário do que foi citado no processo administrativo que serviu de base à assinatura do decreto. Nesse documento, o pressuposto, falso, era de que 100% das salineiras se encontravam em áreas de preservação”, diz o procurador.
Além disso, segue Emanuel Ferreira em sua ação, “o decreto 9.824/19 desrespeita o princípio do desenvolvimento sustentável e diversos tratados de direitos humanos, pois praticamente nenhuma consideração séria foi efetivada em relação à proteção ao meio ambiente, concentrando-se o processo administrativo, unicamente, em questões econômicas”.
O procurador ressalta que o decreto “também ofende o artigo 225 da Constituição, ao ignorar a necessidade de proteção das APPs prevista na lei 12.651, conforme já abordado em ações civis públicas já ajuizadas.
A ACP foi protocolada na 10ª Vara da Justiça Federal no RN, sob o n° 0801432-95.2019.4.05.8401.
“Queda de braço” começou em 2013 com a operação Ouro Branco
A queda de braço entre o Ministério Público Federal e a indústria salineira potiguar começou em 2013, quando o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) detonou a operação Ouro Branco. A partir daí, o MPF iniciou trabalho sob a justificativa que era preciso “regularizar” a atuação do setor salineiro do Rio Grande do Norte, argumento contestado pelas salineiras.
Duas audiências públicas sobre o tema foram realizadas e várias tentativas foram feitas para que as empresas assinassem termos de ajustamento de conduta (TACs), sem sucesso. Técnicos do Ibama e do Idema-RN chegaram a ser convocados para formar o chamado Grupo de Trabalho do Sal, o “GT-Sal”, que elaborou o relatório no qual o MPF baseia suas iniciativas.
Após a busca dos acordos se mostrar infrutífera, as ações foram impetradas no início do ano (algumas das quais já resultaram em liminares determinando a retirada de pilhas de sal das áreas de preservação).
A indústria salineira acusou o MPF de “perseguição” e afirmou que se os “ataques” continuassem, fatalmente inviabilizariam a extração de sal, o que provocaria problemas econômicos e sociais, com a demissão de milhares de trabalhadores. A luta em Brasília, com apoio da bancada federal, mobilizada pelo deputado Beto Rosado (PP), alcançou êxito. O presidente Jair Bolsonaro assinou o decreto tornando a indústria salineira de interesse social, beneficiando as cidades de Mossoró, Macau, Areia Branca, Galinhos, Grossos, Porto do Mangue, Pendências e Guamaré.
O MPF reagiu e afirmou que a ocupação dos estuários pela atividade salineira pode gerar uma série de problemas ambientais, “como devastação de manguezais, mortandade de fauna, ocupação de margens de rios, lançamento de efluentes tóxicos, além de conflitos socioambientais, uma vez que as empresas fecham os canais de rios, impedindo o acesso da população, especialmente de pescadores e marisqueiros”.
Indústria salineira de interesse social
O decreto 9.814/19, do Governo Federal, declara como de interesse social as salinas “cujas ocupação e implantação tenham ocorrido até 22 de julho de 2008”. A menção a esta data decorre da entrada em vigor do decreto 6.514/08 (Lei de crimes ambientais), que dispõe sobre as infrações e sanções administrativas a quem destruir ou danificar florestas ou demais formas de vegetação natural em APPs sem autorização ou em desacordo com a norma.
O Código Florestal de 1965 (lei 4.771) já permitia a ocupação em APPs nas condições de interesse social, utilidade pública ou uso militar. Na última revisão do Código, que resultou na lei 12.651/12, foram incluídas, em seu artigo 3°, diversas outras ações ou atividades como de interesse social e utilidade pública, além de atividades de baixo impacto ambiental.
Dentre as possíveis intervenções em APPs estão as atividades imprescindíveis à proteção da integridade da vegetação nativa, a exploração agroflorestal sustentável, a implantação de certos tipos de infraestrutura e instalações públicas, a regularização fundiária de assentamentos humanos de baixa renda em áreas consolidadas, atividades de pesquisa e extração mineral outorgadas.
Também foi incluída a possibilidade de permissão de “outras atividades similares devidamente caracterizadas e motivadas em procedimento administrativo próprio, quando inexistir alternativa técnica e locacional à atividade proposta, definidas em ato do chefe do Poder Executivo Federal”.
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