Por Amina Costa – JORNAL DE FATO
Nesta semana, a história da advocacia mossoroense foi transformada, diante da posse da primeira advogada transgênero da cidade. Maitê Ferreira Nobre, de 24 anos, foi a primeira mulher trans a receber a carteira da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) na subseção de Mossoró, quebrando inúmeros paradigmas e mostrando que não existe lugar para o preconceito.
A posse de Maitê como advogada foi considerada um marco para homens e mulheres trans de Mossoró e de todo o Rio Grande do Norte, já que esse caso ganhou grande repercussão no estado. Em conversa com a reportagem do JORNAL DE FATO após a sua posse, Maitê Ferreira comentou que a sua posse como advogada representa uma evolução para todas as pessoas trans, demonstrando que elas podem ser o que elas quiserem; basta ter coragem e enfrentar os desafios.
“A minha posse significa que uma pessoa trans pode ser o que ela quiser, pode ser advogada, médica, doutora. Eu fui a primeira, e isso significa que não tem ninguém do meu lado, mas que vão vir outras depois de mim e isso vai se tornar algo possível. Então, eu vejo que eu posso ser um exemplo de que isso é possível e de que as pessoas trans podem ser o que elas quiserem”, disse Maitê à reportagem, após a sua posse.
A advogada disse ainda que tem conhecimento dos desafios que vai enfrentar daqui para frente, já que não tem nenhum suporte familiar na área jurídica, e pelo fato de estar inserida em um contexto muito forte de preconceito. Maitê informou que, diante do pioneirismo, se sente como uma pessoa que está tendo de abrir um caminho totalmente novo, porque os outros caminhos estão fechados.
“Com a posse da OAB, eu vejo um desafio muito grande à minha frente, porque essa posição de ser a primeira me deixou num local de destaque muito grande, criou uma expectativa muito grande. Pessoas trans do estado inteiro estão sabendo disso. Então, eu sinto que tenho que dar o exemplo. A minha história tem que ser diferente, porque eu não tenho família na advocacia, eu não posso simplesmente deixar o meu currículo nos escritórios porque eu sei que o preconceito é gritante. Por isso, eu sou forçada a inventar minha própria história”, comentou a advogada.
Maitê Ferreira passou no Exame de Ordem em junho de 2018, mas não quis tomar posse da função de advogada por não se reconhecer no gênero masculino. Ela comenta que o processo de posse demorou nove meses para acontecer e, que nesse período se fortaleceu como mulher trans, retificou o nome e passou a ser reconhecida oficialmente como mulher. Só após esse processo, Maitê se sentiu à vontade para dar entrada no pedido de posse na OAB.
“Eu passei na OAB em junho de 2018, e quando isso aconteceu, eu comecei a perceber o discurso de pessoas dizendo que eu iria me ‘ajeitar’, cortar o cabelo, querendo me enquadrar num padrão de masculinidade, ainda mais estreito, que é de advogado. Isso me doía muito e por isso não dei entrada na OAB. Eu não iria apagar quem eu sou. Eu passei nove meses nessa certeza de que não queria ser advogada. Nesse meio-tempo, eu fui me fortalecendo. Retifiquei meu nome e meu gênero oficialmente. Depois de tudo isso, eu tive a oportunidade de pensar sobre isso, porque eu comecei a ser reconhecida institucionalmente como mulher e que agora eu poderia ser advogada”, explica.
Maitê informa que foi bem acolhida pela Ordem e que o processo de aquisição do título de advogada durou sete meses, devido questões burocráticas. Agora, advogada, Maitê sabe que se tornou inspiração de muitas pessoas e que tem a missão de construir sua história. “Hoje, eu estou numa situação de visibilidade e muitas pessoas se inspiram sobre mim e dizem que eu sou um exemplo. Mas isso ocorreu porque eu tomei coragem. O que mais me desafia é o que vai acontecer daqui para frente”, finalizou.
Maitê fala sobre preconceitos e escolha do curso de Direito
Maitê Ferreira Nobre é natural de Fortaleza (CE), mas mora em Mossoró há oito anos. É formada em Direito, especialista em Direito Constitucional e mestranda em Direito pela Universidade Federal Rural do Semiárido (UFERSA). A escolha pelo curso não foi fácil, já que sempre teve a vontade de cursar Ciências Sociais. Mas, diante da possibilidade de sair da sua cidade e criar uma nova história, optou pelo curso de Direito na Ufersa.
Maitê contou à reportagem do JORNAL DE FATO que, mesmo não tendo sofrido preconceito, de fato, durante a faculdade, sempre se viu como um corpo estranho dentro da Faculdade de Direito, apesar de ter outras pessoas trans no curso. “Eu sempre me vi muito como um corpo estranho dentro da Faculdade de Direito, primeiro porque minha atuação foi sempre muito conjunta com os movimentos sociais. Não conseguia me incluir, me integrar. Não diria que sofri preconceito diretamente, mas não conseguia me ver dentro do Direito”, explica.
Questionada sobre o que tem a dizer para homens e mulheres trans que convivem diariamente com o preconceito, Maitê Ferreira aconselha a elas se afastar de pessoas tóxicas. “É inevitável não se afetar por isso. É preciso se manter perto de pessoas boas, cercar-se de pessoas que acreditam em você e se afastar de pessoas que querem ver o mal, não importa se é amigo, parente ou familiar que quer ver o seu mal. A sua família é quem te aceita”, finaliza.
Advogadas comentam diplomação de Maitê Ferreira
Maitê Ferreira foi diplomada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) na última quinta-feira, 8, e isso fez que a classe advocatícia e a própria sociedade voltassem a refletir sobre o papel da Ordem. Historicamente, esse posto de advogado sempre foi ocupado por homens brancos, de classe média, que preenchem a parede onde estão os quadros de presidentes.
Dessa forma, a diplomação de uma mulher trans se tornou um divisor de águas na advocacia. A reportagem do JORNAL DE FATO conversou com advogadas, que relataram a importância dessa diplomação para a quebra de paradigmas e de preconceitos. A advogada Brena Santos citou a representatividade da mulher na Ordem, que vem ganhando destaque, depois de anos de lutas.
“Maitê é a primeira e, com certeza, não será a última; esse é o poder da representatividade. São diversas pessoas apontadas pela sociedade como incapazes, que tem Maitê como inspiração para chegar onde desejar. A representatividade não apenas leva o discurso para o espaço, mas empodera pessoas para ocupar também esses espaços. Não existe empoderamento individual; é coletivo. Então, estarmos passando por esse momento na Ordem, especialmente agora, eu como advogada há quatro anos, posso afirmar: nunca me senti tão representada”, disse Brena Santos.
A advogada Mariana Bezerra comentou que a chegada de Maitê à Ordem significa uma conquista coletiva. “Maitê traz consigo o grito de milhares de mulheres. Uma voz necessária para o processo de redemocratização de uma entidade de classe tão importante. A Ordem agora está mais diversa, aguerrida e representativa. Ganhou a OAB, a classe dos advogados norte-rio-grandenses e a nossa sociedade. Em tempos tão hostis, Maitê é essencial, foi um presente para todas nós”, afirma.
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