Por César Santos / Jornal de Fato
A Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021, introduziu mudanças importantes na chamada “Lei da Improbidade administrativa”, como a exigência do dolo (intenção) para comprovar crimes como enriquecimento ilícito; prejuízo ao erário; e atos contra os princípios da Administração Pública. A nova lei também alterou o prazo prescricional para apuração de atos de improbidade, saltando de cinco para oito anos. Para o jurista Francisco Barros Dias, as mudanças trazem novas perspectivas, de forma positiva.
Juiz federal emérito, Barros Dias é potiguar de Olho D’água do Borges. Ele concluiu o curso de Direito, em 1980, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (onde hoje é professor), com especializações em Direito do Trabalho e Direito Processual Civil, na UFRN e na Universidade de Brasília (UnB), além de Mestrado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Ainda fez cursos de aperfeiçoamento na University Of Auckland (Nova Zelândia), Universidade do Porto (Portugal) e Université de Limoges (França). Na vida pública, Barros Dias exerceu atividades de escrivão, advogado, auxiliar judiciário, promotor de Justiça e juiz federal. Também atuou no Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Norte (TRE/RN), de 1989 a 1993.
Nesta semana, Barros Dias ministrou o curso “Iniciação à Advocacia: petição inicial” para jovens advogados na OAB-Mossoró. No intervalo, tomou o “Cafezinho com César Santos” em longa conversa que segue:
A lei de improbidade administrativa sofreu grandes alterações em 2021 e provocou muitos debates a respeito das inúmeras modificações ocorridas, o que exige preparo e atualização para o enfrentamento das questões diárias nessa seara. Quais os impactos que o senhor compreende ter havido?
Na realidade, a Lei da Improbidade Administrativa é a 8.429 de 1992 e, no período até 2020 houve muita coisa na vida pública do país, como enriquecimento ilícito e outras ilegalidades contra o patrimônio público que desafiaram a área de controle que é feito pelo Judiciário e, logicamente, passando pelo crivo do Ministério Público e dos Tribunais de Contas. Mas em 2021, a lei foi profundamente alterada. Essas alterações, para alguns, implicaram em maior facilitação da lei, mas para outros nem tanto porque as sanções foram mais elevadas. Por exemplo, suspensão de direitos políticos que ia no máximo até 10 anos, agora vai até 14 anos. Veja que a coisa teve uma mudança importante nesse aspecto. Agora, tem quem afirme que em outros pontos a lei ficou mais branda em relação ao que era, mas, na realidade, não vejo por essa perspectiva.
Como assim?
Como eu sou um professor que lido com a matéria há muito tempo, vejo que muita coisa da nova lei veio em razão de criação doutrinária que já existia. A jurisprudência no Brasil, que estava com a tendência de ser muito rigorosa, tem um caráter sancionatório, mas não é um caráter penal. Estamos falando de uma lei que visa sancionar atos do poder público, praticados por agentes públicos, em razão de existir até a Constituição Federal de 88 uma lacuna na ordem jurídica, que um agente público só podia ser sancionado por meio de uma ação penal ou de um processo administrativo, e não existia um processo judicial para outros tipos de comportamentos considerados ilícitos pelo agente público. Então, nesse aspecto, essa nova Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021, veio atender a essa lacuna que precisava ser corrigida.
A principal alteração do texto é a exigência de dolo (intenção) para que os agentes públicos sejam responsabilizados. Danos causados por imprudência, imperícia ou negligência não podem mais ser configurados como improbidade. Isso não representa um risco de facilitar a vida de gestores públicos pouco zelosos?
Nós temos três tipos de improbidades que são as consideradas graves, médias e leves. Antes da reforma, a improbidade grave só se configuraria com o dolo, ou seja, já se exigia a intenção do agente na prática de improbidade. No caso da improbidade de grau médio, que é a que dá prejuízo ao erário, exigia comprovação de duas formas: dolosa, que é intenção, e culposa, que é exatamente a imprudência, imperícia e negligência etc. Essa segunda desapareceu no que tange à lesão ao patrimônio público, como forma de ficar só a forma dolosa. Daí, considero um exagero dizer que houve, digamos, uma facilitação aos agentes públicos até porque a forma dolosa já existia em lei. É preciso entender que toda a responsabilidade pessoal, responsabilidade subjetiva, só é considerada com dolo; isso existe no mundo inteiro. Sem esse elemento fica impossível você encontrar responsabilidade de alguém.
Vamos falar um pouco do Decreto-lei 201/67, que dispõe sobre as motivações dos crimes de responsabilidade de prefeitos que podem levar à cassação de mandato. O senhor não acha que os agentes públicos dão pouca relevância a essa lei, por vezes, não respeitando?
Esse decreto trata de duas situações: crimes de responsabilidade que são praticados no âmbito político e crimes correspondentes ao direito penal. O artigo 1º, por exemplo, trata o crime de responsabilidade correspondente a peculato como é no Código Penal, exclusivamente para prefeitos. Veja que aqueles que eram previstos no Código Penal para outras espécies de autoridades, não estão inseridos no Decreto-lei 201/67. O processo por crime de responsabilidade, que é, como dizer assim, um processo de impeachment no âmbito municipal, e aí trouxe também o peculato da responsabilidade criminal, que são os incisos I, II e III, que cuidam exatamente dessa responsabilidade.
A operação Lava Jato, no ambiente jurídico, é vista por muitos como um provocador da ideia punitiva dentro do Judiciário. Essa polêmica parece amenizar o dolo dos agentes que praticaram crimes contra o patrimônio público, para atacar as sentenças contra os culpados. Isso não é preocupante?
Primeiro ponto que temos que observar é que a Lava Jato, da forma e da dimensão como ela foi divulgada, as pessoas acham que antes ninguém era punido por aqueles mesmos crimes. Na época que eu era desembargador federal, trabalhava no Tribunal Regional Federal da 5ª Região, não tinha uma semana que, tanto no pleno como nas turmas, não julgasse processos dos mesmos crimes vistos na Lava Jato. Isso ocorria de forma repetida semanalmente. O TRF da 5ª Região cuida de cinco estados do Nordeste, então, só desses estados nós julgávamos todos esses crimes da mesma forma como visto na Lava Jato. Só que a divulgação da Lava Jato, até pelo tamanho dos agentes envolvidos, a divulgação foi estrondosa, dando uma dimensão aos crimes que repentinamente já eram jugados. E os tribunais continuam julgando casos idênticos aos da operação Lava Jato, envolvendo autoridades de todas as espécies e de todos os cantos do Brasil.
Mas a Lava Jato tem vida própria, virou quase uma instituição, mesmo com os seus pecados, o senhor não acha?
O problema é que a Lava Jato tem duas conotações: a Lava Jato que posteriormente se configurou em determinados excessos e/ou abusos e a Lava Jato que atacou crimes como se ninguém nunca tivesse visto. Essa segunda Lava Jato sempre existiu, continua existindo e nunca vai parar. Aquilo que foi julgado em Curitiba-PB é julgado semanalmente em todo o país, tanto na justiça federal quanto na justiça estadual. Existem milhares de processos dessa mesma matéria pelo Brasil a fora.
O senhor acha, então, que a Lava Jato não acrescentou ao processo de investigação e punição de maus gestores?
Agora, aquela Lava Jato que cometeu excessos, abusos e muita coisa que depois veio à tona, acho que ela nunca deveria ter surgido, porque isso leva ao descrédito. Eu sou uma pessoa que preservo muito por duas coisas em nossa área de atuação: primeiro, o Direito, que muitos acham que é um desastre, mas digo que o Direito é a melhor coisa do mundo; o único defeito é que ele é aplicado pelo homem, mas isso é outra coisa. Segundo, é a preservação das instituições. Quando se excede nas coisas, as instituições perdem credibilidade, perdem sua finalidade, e aí a gente vê a sociedade questionar as instituições como o Judiciário, o Ministério Público e a própria classe política. Essas coisas existem exatamente por esses excessos, mas as instituições são perfeitas, são boas e elas existem no mundo inteiro de uma maneira que leve à credibilidade. Agora, se ela é boa ou ruim depende de quem são os gestores, seus administradores. O Brasil tem só 520 anos de descoberta, ainda somos uma jovem nação. Veja, por exemplo, que a improbidade foi regulamentada somente em 1992, tem apenas 32 anos, é um recém-nascido (riso) em matéria de um instituto jurídico. São essas coisas que nós precisamos e temos que levar em consideração.
Temos hoje, no Brasil, o Judiciário colocado na mesma balança da política, dada a divisão que o país vive entre o lulismo e o bolsonarismo. Um lado, inclusive, chega a falar sobre “ditadura da toga”. Como o senhor vê essa questão?
Eu fico muito chocado com essas coisas. Tenho mais de 40 anos de atividade na área, já fui escrivão, assessor de juiz, servidor público da Justiça Federal, promotor, advogado e juiz federal por 28 anos, e em todo esse período da minha vida nunca tinha visto uma coisa igual ao que está acontecendo agora. Como eu me aposentei há cerca de oito anos, estava começando esse novo modelo do Judiciário, que gera tanta controvérsia. Eu até agradeço a Deus por ter saído da atividade de juiz na hora certa, porque não sei como iria ficar em um ambiente desse. Não foi para isso que eu estudei, passei em concurso nacional para juiz federal e exerci a minha vocação. Eu fui considerado o juiz que mais julgava no Brasil, porque eu tinha uma dinâmica de celeridade na gestão de processo, que permitia uma resposta extraordinária à sociedade. O que eu digo é o seguinte: em razão dessa generalização pelas redes sociais, que permitem todo mundo ter informações a todo momento, as instituições ficaram mais expostas e passaram a ser acompanhadas de forma mais atenta.
Mas ter acesso à informação não é bom para a transparência, para a sociedade acompanhar a atividade pública, fiscalizar as instituições?
Um ministro do Supremo tornou-se mais conhecido do que um jogador de seleção brasileira. Hoje você não consegue escalar a seleção brasileira, mas escala todos os ministros do Supremo Tribunal Federal. Isso se deve, logicamente, a um Supremo que funciona de forma exposta. As sessões do Supremo são transmitidas ao vivo. Isso, para o resto do mundo, é muito estranho. Por exemplo, nos Estados Unidos, a decisão da Suprema Corte é tomada em uma sala secreta. Depois que eles discutem nessa sala secreta em exaustivas reuniões e tomam a decisão, é anunciado para o conhecimento público, com riqueza de detalhes. Tem um livro (Por Detrás da Suprema Corte) que explica como é que funciona a Suprema Corte americana e essa obra indica que eles decidem nesses debates, sem transmissão das reuniões, nem qualquer outra exposição. O livro conta que há muita divergência, conflito e tensos debates, mas que há a preservação das leis e da imagem da instituição. No Brasil, é diferente. A nossa Suprema Corte está permanentemente exposta.
Mas o senhor concorda que o problema é a contaminação político-partidária?
O Judiciário é uma entidade que pertence a um grupo maior que é a sociedade brasileira e, logicamente, os ministros assumem cargos políticos, porque cargos públicos todos eles são políticos, por isso, o judiciário termina se contaminando. Isso é péssimo, não vejo em nenhum aspecto como uma coisa salutar. E, se é ruim para o Judiciário, é pior ainda para a sociedade. O cidadão passa a ter uma visão do Judiciário de instabilidade, incerteza, insegurança, e isso é uma coisa absolutamente inconcebível e impensável. Eu, que passei a vida inteira no Judiciário e nunca o vi dessa maneira, tenho a cada dia mais impacto em razão desse turbilhão que a gente vive presenciando do descrédito da instituição. Isso é lamentável. A sociedade que não preserva as suas instituições, ela está fada ao fracasso.
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