Dentre as ações acadêmicas que foram alvo dos “agentes” está uma mesa-redonda organizada pela Faculdade de Filosofia de Mossoró, em 3 de maio de 1982, cujo tema era “Partidos Operários no Brasil, ontem e hoje”, com filiados aos partidos PCB e PCdoB
Por Fábio Vale / Repórter do Jornal de Fato
O ano era 1983. O Brasil já estava nos períodos finais da ditadura militar iniciada em 1964. O monitoramento de determinados setores da sociedade civil em todo o país era uma prática de praxe da gestão da época. O procedimento controverso também teve como alvo certas instituições públicas da área da educação instaladas na segunda maior cidade do Rio Grande do Norte.
Documentos atualmente disponíveis ao público no site do Arquivo Nacional, que é um órgão público federal responsável pela gestão e preservação de documentos oficiais da União, revelam que em Mossoró pelo menos duas entidades governamentais de ensino foram alvo de espionagem por parte da ala que estava no poder nesse período turbulento da história brasileira.
A reportagem do Jornal DE FATO realizou recentemente uma breve consulta a alguns desses documentos disponíveis no site do Arquivo Nacional, que estão relacionados a esse processo de espionagem em Mossoró, que colocou na mira da ditadura militar duas instituições de ensino superior em funcionamento no município.
Parece até roteiro de cena de filme, mas tudo está bem longe de ser uma mera ficção. Em 1982, o Serviço Nacional de Informações (SNI), órgão criado em 1964 para coordenar e supervisionar as atividades de informações e contrainformações com o objetivo de identificar e eliminar os chamados "inimigos internos" do regime, desenvolveu espionagem em diversas instituições em todo país, incluindo duas instituições de ensino superior em Mossoró.
URRN, ESAM e eventos acadêmicos no centro da espionagem
Os espiões atuaram especialmente na então Universidade Regional do Rio Grande do Norte (URRN), atual Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), e na Escola Superior de Agricultura de Mossoró (Esam), atual Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA), conforme demonstram diversos documentos produzidos pelo SNI e atualmente disponíveis no Arquivo Nacional.
Dentre as ações acadêmicas que foram alvo dos “agentes” estão uma mesa-redonda organizada pela Faculdade de Filosofia de Mossoró, em 3 de maio de 1982, cujo tema era “Partidos Operários no Brasil, ontem e hoje”, tendo contado com a participação de Salomão Malina e Haroldo Lima, então filiados ao PCB e ao PCdoB, respectivamente.
O órgão também espionou a “V Semana de Filosofia do Rio Grande do Norte”, ocorrida em Mossoró entre 1º e 5 de maio de 1984, e seus participantes. Além das atividades acadêmicas, há relatórios sobre greves e a respeito do contexto político da cidade, produzidos pelo SNI na época, bem como documentos referentes à prisão de jovens considerados “subversivos”, na década de 70.
Espionagem em universidades em Mossoró será discutida em audiência pública
O Ministério Público Federal (MPF) vai promover uma audiência pública no próximo dia 2 de abril, com o tema “61 anos do Golpe Militar e os persistentes legados da Ditadura: a atuação do Serviço Nacional de Informações (SNI) na UERN e na Esam em Mossoró”. O evento está marcado para 19h no auditório da Faculdade de Filosofia da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), em Mossoró.
Idealizador da audiência, o procurador da República Emanuel Ferreira ressalta que o objetivo do evento é não só fortalecer a atuação dos órgãos públicos em prol da democracia e no combate ao totalitarismo como também concretizar o direito à memória e à verdade no âmbito da Justiça de Transição, levando em conta especialmente que professores (alguns dos quais ainda vivos) e toda a comunidade acadêmica foram alvos do abuso cometido pela Ditadura Militar.
O MPF explicou que a participação na audiência se dará de forma unicamente presencial e terão direito a se pronunciar representantes da UERN e da Ufersa; professores e demais pessoas diretamente atingidas pelo monitoramento indevido; além de cidadãos interessados no assunto. Para isso, deverão solicitar a participação, até o próximo dia 26 de março, exclusivamente pelo e-mail carlosgleudstton@mpf.mp.br, com o título “Inscrição em audiência pública” e a identificação da pessoa interessada em participar.
A mensagem deverá conter a qualificação da pessoa e do órgão ou da entidade interessados. Ao fim da audiência, que deverá ser gravada e ter sua íntegra disponibilizada no YouTube, os membros do MPF vão apontar os encaminhamentos futuros sobre o tema no âmbito de sua atuação.
MPF em Mossoró diz que ‘atuação abusiva da ABIN pode ter ocorrido em face de discentes da UFERSA entre 2019/2022’
O documento da Procuradoria da República em Mossoró, do Ministério Público Federal (MPF), que trata da audiência pública na cidade potiguar sobre a atuação do SIN nas antigas URRN e ESAM considera que a necessidade de realização da atividade foi definida considerando também o fato de que uma alegada “atuação abusiva da ABIN, em aparente continuidade com o SNI, pode ter ocorrido em face de discentes da UFERSA entre 2019/2022”.
O edital de convocação da audiência do MPF pontua que “da ditadura militar ostentam persistentes legados nas instituições brasileiras, havendo semelhanças entre a atuação do SNI e a própria ABIN”, que é a Agência Brasileira de Inteligência, órgão do serviço de inteligência civil do Brasil e considerado equivalente a entes ditos do serviço secreto, como a CIA dos Estados Unidos e o SVR da Rússia.
Segundo o documento do MPF, a iniciativa do órgão tem como foco “proteção efetiva da democracia”. O ente também pontua que “a situação política em Mossoró/RN também foi alvo da inteligência ditatorial, tendo a informação nº 2519 de 30 de novembro de 1983 detalhado o cenário político local” e chama atenção para o fato de que “o monitoramento de greves de estudantes da ESAM também foi alvo do serviço de inteligência, como ocorreu em 14 de junho de 1985”.
O edital acerca da audiência pública menciona ainda a “prisão de Ricardo Torres de Carvalho, Jonas Rufino de Paiva, Francisco Aurélio de Araújo, Lourival Alves da Silva e José Henrique da Fé efetivada pela polícia da cidade de Mossoró em 1º de maio de 1970, tendo em vista que eles estavam distribuindo panfletos considerados ‘subversivos’”.
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