Por César Santos - JORNAL DE FATO
Em julho deste ano, o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), decidiu sair do armário em rede nacional: “Sou gay e amo outro homem”, afirmou a um programa de TV. De imediato, o ex-deputado federal Jean Wyllys levou para o Twitter a história da governadora do RN “Que destaque foi dado por essa mesma imprensa ao fato de Fátima Bezerra e aliada desde sempre da comunidade LGBTQIAP+, ser lésbica? Nenhum.”
A repercussão nas redes sociais levou a governadora a se posicionar: “Na minha vida pública ou privada, nunca existiram armários”, escreveu. Daí, o interesse da chamada grande imprensa em entrevistá-la sobre a sua vida íntima. A Marie Claire foi a única que conseguiu a abertura da governadora para perguntar se ela tem companheira e se aceitaria contar sobre ela como fez o governador do RS.
Leia trechos da entrevista:
Marie Claire - Provavelmente você já se cansou de responder a esta pergunta, mas não tenho como não fazê-la: como se sente sendo a única governadora deste país?
Fátima Bezerra - Pior que não cansei, sinto que é importante responder sempre que puder. Olha só, claro que só tenho a agradecer a generosidade do potiguar e dizer o imenso orgulho que tenho desse povo que me elegeu governadora, a primeira de origem popular do estado, quebrando um ciclo de décadas de governos de perfis oligárquicos, tradicionais e conservadores. Agora, ao mesmo tempo, ser a única mulher é motivo de muita reflexão, de perguntar por que em 27 estados da federação só há uma governadora. O que é isso?
MC - Qual é a resposta que dá para si? Entendo que é motivo de reflexão, mas também seria de indignação?
Não devemos nos contentar em ser a exceção, concorda? Agora veja, quando você olha para o fato de o Rio Grande do Norte ser o único estado que tem uma mulher no governo, tem que levar em consideração fatos históricos. Temos um protagonismo político das mulheres, foi aqui que as mulheres exerceram o voto pela primeira vez. Foi aqui também que elegemos a primeira deputada estadual e tivemos a primeira prefeita da América Latina. Mas tudo isso não nos livra da luta, ou eu não seria a única.
MC - Quero falar sobre a declaração do Eduardo Leite (PSDB-RS) no programa Conversa com Bial. A internet se dividiu entre “que bom que um político se disse gay publicamente” e “isso é manobra política”. Como a senhora viu a declaração dele?
Para mim, ele teve um gesto importante e por isso ofereci minha solidariedade, especialmente em razão dos ataques que viesse a sofrer, porque sei o que é isso.
MC - A senhora, então, já sofreu ataques homofóbicos?
Já sofri não, continuo sofrendo. Sei muito bem o que é a extensão dessa dor, como ela pode ser cruel. Ainda mais hoje, nesses tempos, com esse fenômeno das máquinas fraudulentas de mentira, calúnia e difamação...
MC - Fala de fake news?
Exatamente. Tenho sido duramente atacada. E há também os ataques de natureza misógina, pelo fato de eu ser mulher. Na verdade, eu diria que a violência maior que tenho sofrido é a de gênero. De tentar desqualificar a gente. Fazem caricaturas, criam versões como se não tivéssemos capacidade. Aí eles vêm com tudo, com a minha condição de mulher, do ponto de vista da orientação sexual, vêm com todos esses preconceitos e cheios de ódio. Eu não vou citar exemplo porque não vale a pena repetir a violência.
MC - Quando o Jean Wyllys tuitou sobre a senhora, ele também citou a sua caminhada “desde sempre” pelas populações LGBTQIAP+. Queria ouvi-la sobre isso.
De fato, sempre estive na linha de frente das pautas que a gente chama de pautas de caráter humanitário e civilizatório, que é respeitar o direito de as pessoas serem felizes, seja no campo da sua orientação sexual, da religião ou ideologia política. Então, para mim o mais importante é assumir posições contra todo e qualquer tipo de opressão. Eu jamais poderia me mover por egoísmo. Isso não faz parte do meu DNA. A minha família é de origem pobre, passamos por muitas dificuldades. Vi a comida ser racionada na minha casa em épocas de seca braba. Minha mãe dizia que eu não podia repetir o prato porque senão meu irmão ficaria sem. Olha, quem passa por situações como essa adquire uma sensibilidade forte.
MC - Foi nessa família que aprendeu sobre alteridade, liberdade e respeito ao próximo? Como elas lidaram com sua orientação sexual?
Na minha família, os valores da solidariedade foram muito defendidos. A gente era muito pobre, mas sabe a coisa mais bonita que eles me ensinaram? O amor ao próximo com atitudes concretas. É que eles dividiam o pouco que a gente tinha com os que tinham menos do que nós. Porque você sabe que tem isso, tem os pobres e tem os ainda mais pobres. Prefiro não responder a segunda pergunta.
MC - Entendo. Em algum momento, algum marqueteiro político ou assessor, alguém chegou para a senhora e falou “a sua orientação sexual não pode ficar nítida, não pode ser vivida livremente porque isso vai atrapalhar a política”?
(Neste momento, Guia, uma das assessoras, pede que não continuemos o assunto.)
É que preferia contar do que estou fazendo como governadora. Não me leve a mal, não estou fugindo da pergunta. Quem me conhece sabe que tenho uma coisa dentro de mim, respeito muito as questões das pessoas. E não posso falar só por mim, tenho que olhar do ponto de vista do outro, o outro tem suas inseguranças.
MC - Quando a senhora fala do outro, está falando da sua companheira?
Não, não estou falando da minha companheira porque nem tenho companheira. É isso, sabe. Tem uma série de questões que envolvem suscetibilidades. Quando a gente fala suscetibilidade é porque envolve os outros. Eu acho que o mais importante é deixar claro que nunca me omiti. Inclusive, basta olhar os meus programas de governo. A gente tem um compromisso com a luta em defesa da diversidade, o combate à LGBTfobia. O racismo, o machismo, isso não se coaduna com a tese do mundo civilizado que queremos.
MC - Pode nos contar de ações do governo nesse sentido?
Instalamos um conselho da comunidade LGBTQIAP+ aqui no Rio Grande do Norte. Outro exemplo: aqui tem uma secretaria de mulheres, mas não é feita como antigamente, sem estrutura e sem orçamento. Tem uma secretaria de mulheres, da juventude, da igualdade racial e dos direitos humanos. Mais um exemplo: a questão de gênero que está explodindo no país, principalmente nesses tempos de pandemia, que fez com que a mulher tivesse que ficar ainda mais em casa, portanto, perto do agressor. Graças a Deus, até na contramão do que tem acontecido no país afora, em 2020 nós diminuímos o número de feminicídio. Não podemos de maneira nenhuma deixar naturalizar essa violência contra as mulheres, isso não é mimimi. Precisa ser enfrentada com políticas de prevenção, de promoção da vida das mulheres. Tenho defendido o programa Maria da Penha nas escolas. Precisamos desconstruir, desde a idade escolar, esses mitos.
MC - Tipo “em briga de marido e mulher não se mete a colher”?
Exatamente. Tem que meter a colher sim, o Estado tem que estar preparado para fazer o seu papel, com base na legislação. As mulheres vieram ao mundo para ser felizes, para ter uma vida com dignidade e direitos, e ao lado dos homens, se assim quiserem.
MC - O programa Maria da Penha Vai à Escola já está implementado?
Já. O professor tem o dever de fazer esse debate para que a gente possa desconstruir todos esses conceitos malditos de intolerância, seja de que natureza for. Temos que trazer para dentro da escola o encantamento, do ponto de vista de coletivamente a gente trazer a defesa dos valores da solidariedade, da cooperação, do afeto, do respeito ao outro. E isso aqui é uma agenda que tem que estar dentro da escola, pelo que significa a escola.
Tags: