Somente no período de três anos recentes, foram registrados oficialmente no Rio Grande do Norte mais de mil casos de indivíduos que sumiram, com predomínio de negros e adolescentes. No Brasil, cerca de 200 pessoas desaparecem por dia
Por Fábio Vale / Repórter do JORNAL DE FATO
Quase 200 pessoas desaparecem por dia no Brasil. O número assustador chama atenção para uma problemática que atinge todo o país. No Rio Grande do Norte, o cenário também é preocupante. Somente no período de três anos recentes, foram registrados oficialmente no estado mais de mil casos de indivíduos que sumiram.
Os dados são do Mapa dos Desaparecidos no Brasil, divulgado no último dia 21 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). O relatório de 40 páginas mostra que o país registra uma média diária de 183 pessoas desaparecidas, com "dinâmicas e motivações completamente distintas". Em nível nacional, a publicação revela que foram notificados mais de 200 mil ocorrências de desaparecimentos entre 2019 e 2021.
O levantamento dá conta de que no território potiguar foram 1.050 registros de pessoas sumidas neste referido período de três anos. Segundo o relatório do FBSP, em números absolutos, o RN teve 356 pessoas desaparecidas em 2019. No ano seguinte, essa quantidade teve uma considerável redução: foram 249 casos. Já no ano de 2021, esse número aumentou, consideravelmente, superando até o primeiro ano mapeado. Foram 445 ocorrências.
Em relação à taxa de casos por 100 mil habitantes, em 2019, no estado potiguar, o índice de pessoas desaparecidas foi de 10,2; seguido de 7,0 em 2020; e 12,5 em 2021. O comparativo aponta uma variação de 23,1%, entre o primeiro e o último ano pesquisado. O relatório detalha que em nível nacional, o estado de São Paulo, com mais de 18 mil casos, liderou o ranking de registros de indivíduos que sumiram no país entre 2019 e 2021. Minas Gerais e Rio Grande do Sul figuram logo em seguida, com, respectivamente, 6.857 e 6.413 ocorrências.
Em relação à taxa por 100 mil habitantes, o Distrito Federal ficou em primeiro lugar, com 69,5; seguido de Rio Grande do Sul, com 57,9; e Mato Grosso do Sul, com 51,8. Quanto à variação percentual entre 2019 e 2021, a maior foi registrada no estado de Tocantins: 90,2 %. Estados do Nordeste, como o Ceará, notificaram redução entre os anos comparados, apesar de ter contabilizado mais de 2 mil pessoas desaparecidas em 2019; mais de 1.600 em 2020; e mais de 1.800 em 2021. O relatório faz a ressalva de que esse período de três anos foi marcado pelo auge da pandemia da covid-19, "que altera o número de registros da ocorrência" por fatores como isolamento social.
Pessoas negras predominam dentre desaparecidos também no RN; 73% dos casos
O Mapa dos Desaparecidos no Brasil, divulgado no último dia 21 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), também traçou o perfil das pessoas desaparecidas no país entre 2019 e 2021. Com relação à etnia, dentro da tendência nacional, pessoas negras também predominam no Rio Grande do Norte dentre indivíduos que sumiram nestes três anos.
Segundo o relatório do FBSP, neste período mapeado, a parcela da população atingida pela problemática, chamada de 'fenômeno' na publicação, é majoritariamente do gênero masculino, jovem e negra. "Especificamente sobre o perfil étnico racial, 54,1% das pessoas desaparecidas são pretas e pardas, mas, chama a atenção que em 26% dos registros a raça/cor não foi descrita no boletim de ocorrência, uma informação primordial para o processo de busca e investigação", destacou trecho do estudo.
"Sem as características físicas da pessoa que desapareceu torna-se quase impossível sua identificação quando da localização, especialmente se essa pessoa não estiver portando nenhum documento. Em alguns estados, a totalidade dos casos fornecidos em base de dados não incluía a informação do perfil étnico racial da vítima, como Acre e Maranhão", acrescentou o relatório, apresentando dados por estados brasileiros do perfil racial dos registros de pessoas desaparecidas no país neste período já mencionado.
O RN aparece com 516 notificações de pessoas desaparecidas de etnia negra. Registros envolvendo brancos figuram com 190 casos; além de um indígena e 343 notificações com a raça "não informada". A etnia amarela não aparece com ocorrências no estado. Dentro do percentual, indivíduos que sumiram de etnia negra predominam em 73% dos casos e brancos em 26,9%. O relatório do FBSP enfatiza que foram analisados mais de 300 mil registros policiais, dos quais 200.577 referem-se a pessoas desaparecidas no triênio 2019-2021, e outros 112.246 a pessoas localizadas.
Adolescentes e homens predominam como desaparecidos também no RN; 26% dos casos
O levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) detalha ainda que o público adolescente predomina dentre a parcela de pessoas desaparecidas no Rio Grande do Norte entre 2019 e 2021. O relatório da entidade constata que dentre a faixa etária dos registros de indivíduos considerados como sumidos no estado, dentro da tendência nacional, 270 tinham entre 12 a 17 anos, ou seja, 26% do total de ocorrências. Em seguida, aparecem as pessoas de 30 a 39 anos: 178 casos; 18 a 24: 167; 40 a 49: 125; 25 a 29: 102; 60 +: 86; 50 a 59: 72; e de até11 anos de idade, com 39 notificações de desaparecidos.
"Apesar de os adolescentes constituírem o principal grupo de desaparecidos na maior parte do país, os relatos dos entrevistados indicam que a investigação destes casos não é tida como prioridade pelas Polícias Civis, uma vez que compreendidos como 'problema de família'. Neste sentido, não apenas as causas, mas também as responsabilidades e possibilidades de solução são deslocadas para o interior das unidades domésticas. As famílias são vistas como 'instâncias produtoras de desaparecimentos' em função da violência doméstica ou fruto da 'rebeldia' dos adolescentes. É comum, portanto, que a polícia, nesses casos, apenas faça o registro, sem que haja uma atuação policial", observa trecho da publicação.
Quanto ao gênero dos registros de pessoas desaparecidas no país, ainda dentro da tendência nacional, o masculino também predomina no RN. Entre 2019 e 2021, foram 632 casos envolvendo o gênero masculino e 352, o feminino. "No que concerne ao dia da semana, pessoas desaparecem mais às sextas e aos sábados, dias que concentram mais de 30% dos registros", atesta trecho do relatório, acerca do cenário nacional.
Pessoas localizadas
No Brasil, 112.246 pessoas foram localizadas entre 2019 e 2021, segundo o Mapa dos Desaparecidos no Brasil, divulgado no último dia 21 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), e que também traçou o cenário das pessoas localizadas no país. O estudo pontua que não é possível saber, entretanto, se as pessoas localizadas no período desapareceram neste triênio ou se o desaparecimento data de anos anteriores. Destaca-se, porém, que os estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Distrito Federal concentram a maior taxa de registros de localização em 2021, com, respectivamente, 56,1; 55,0; e 52,7. Neste ranking, o RN não figura com dados disponibilizados. A reportagem solicitou dados à Polícia Civil do RN que informou que, em 2022, foram 160 registros de localização de pessoas desaparecidas no estado, sendo a maioria de 35 a 64 anos de idade. Já entre 1º de janeiro e 4 de abril de 2023, foram 69 casos, também predominando a faixa etária anterior.
Psicóloga orienta sobre como lidar com o desaparecimento de um ente querido
Leilane Andrade: "No desaparecimento, a perda é uma incógnita"
"O desaparecimento de uma pessoa próxima é considerado uma perda e configura-se como luto, pois há rompimento do vínculo afetivo. Para situações de perdas repentinas, o processo de enlutamento vai ser ainda mais complexo do que aquele provocado por morte, pois existe o elemento surpresa, a pessoa some sem deixar sinais ou indício algum". A análise é da psicóloga clínica, Leilane Andrade, que também é jornalista e atua em Mossoró.
"O principal aspecto a ser observado é no tocante à elaboração desse luto pelas pessoas próximas, que ficam buscando os porquês e um entendimento racional do que aconteceu com o intuito de aliviar a dor", acrescenta ela, pontuando que 'não ter respostas e alimentar a esperança de que o ente pode reaparecer a qualquer momento nutre o sentimento de negação, que é uma das fases do luto'.
A especialista analisa também que, além disso, "os que ficam podem desenvolver o sentimento de culpa, de que poderiam ter sido negligentes com a pessoa desaparecida, se questionam constantemente que poderiam ter feito algo para evitar o fato. Quando o sumiço acontece logo após um conflito ou desentendimento familiar esse sentimento é ainda mais forte", complementa.
"Não saber o paradeiro, se a pessoa ainda está viva ou não é angustiante e leva a um sofrimento mental muito grande para quem vivencia essa experiência, causando, inclusive, prejuízos e alterações no funcionamento emocional e cognitivo da pessoa enlutada. No desaparecimento, a perda é uma incógnita. Os familiares da pessoa desaparecida deixam até de viver as suas vidas baseadas na possibilidade do 'se': 'E se ‘fulano’ aparecer?’, 'E se ela estiver com fome, com frio?'. Viver preso no 'se' é ficar no limbo da incerteza, da dúvida e isso pode ser paralisante", pondera a psicóloga.
Para Leilane Andrade, é importante salientar que o luto é um processo natural e pode ser vivido de maneira saudável, porém, em casos de perda repentina, inesperada e precoce isso pode ser um preditor complicador na elaboração desse luto, podendo gerar problemas psicológicos como depressão, ansiedade e até um Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT).
Especialista pontua que a ineficiência estrutural potencializa a angústia e o sofrimento mental vivido pelas famílias
A psicóloga clínica, Leilane Andrade, fala também sobre que medidas de caráter psicológico/mental podem ser adotadas por alguém que está com uma pessoa próxima desaparecida. "Muitos enlutados têm dificuldade em restituir a perda, seja pela falta de apoio para amenizar o sofrimento ou falta de encorajamento para buscar ajuda, o que é imprescindível, nesses casos, para ressignificar a dor e reorganizar a sua vida".
Ela explica que é preciso observar os sinais, o que é muito difícil para quem está vivendo um sofrimento mental ocasionado pela perda repentina. "Porém, parentes e amigos próximos podem fazer esse exercício e orientar a pessoa a buscar ajuda profissional", recomenda, dizendo que antes de tudo, é importante conhecer os aspectos familiares e ambientais da pessoa desaparecida para compreender se havia uma motivação aparente, seja ela causada por conflitos familiares, por sofrer abusos, que geram consequências danosas ao psicológico e a única alternativa viável para a pessoa naquele momento era fugir e/ou desaparecer.
"E também observar se a pessoa desaparecida sofria de alguma doença ou transtorno mental e que sumiu durante um momento de surto ou desorientação do estado mental", orienta a especialista, chamando a atenção para a importância de medidas como o Dia Internacional de Crianças e Adolescentes desaparecidos, datado de 25 de maio. "São datas que servem para alertar a população sobre a dor das famílias que vivenciam essas perdas e também a importância da empatia e do cuidado com o outro", ressalta.
"Embora, também sirva para que, enquanto sociedade, possamos cobrar das autoridades mais eficiência, mais investimento em tecnologia nas investigações e buscas por pessoas desaparecidas. A ineficiência estrutural dos órgãos públicos responsáveis por desenvolver esse trabalho fomenta mais ainda a angústia e o sofrimento mental vivido pelas famílias", enfatiza.
Conselheira Tutelar avalia que violações de direitos e conflito familiar podem motivar desaparecimentos de menores
Para a conselheira tutelar Maria José de Paula Morais, da 33ª Zona de Mossoró, violações de direitos e conflito familiar podem motivar desaparecimentos de menores. Ela cita que situações como prostituição, tráfico de crianças e adolescentes, e conflito familiar, dentre outras, podem vir a estar por detrás do sumiço de crianças e adolescentes.
Maria José, que está no segundo mandato de conselheira tutelar, conta que o órgão recebe muitas famílias que buscam ajuda e orientação quando algum menor está desaparecido. "O Conselho realiza as devidas orientações para os mesmo registrarem Boletim de Ocorrência para que sejam iniciadas as buscas", explica, informando que ano passado a instituição contabilizou dois casos e neste ano, um até então.
A Conselheira, que também é educadora popular e gestora ambiental, orienta que em caso de desaparecimento de criança e/ou adolescente, o responsável pelo menor deve procurar de imediato a delegacia de Polícia Civil, que tem a competência de investigar o ocorrido. Maria José menciona que ao longo da trajetória profissional, o caso de destaque envolvendo pessoa desaparecida que ela lembra é o de duas irmãs, com faixa etária de 8 e 14 anos, que segundo relatos dos pais, estavam desaparecidas, mas que logo foi solucionado, pois elas apareceram bem.
A conselheira tutelar da 33ª Zona de Mossoró ressalta que, apesar da importância de medidas como o Dia Internacional de Crianças e Adolescentes Desaparecidos, datado de 25 de maio, "deveria ter mais ações levando informações para toda a sociedade, e apoio às famílias que passam por esse problema, pois os mesmos ficam sem saber a quem recorrer". Ela conclui ressaltando que dos casos de desaparecimento de crianças/adolescentes que chegam ao Conselho, muitos surgem diante conflito familiar e outros de estarem sendo vítima de agressões físicas.
"O Conselho, diante da existência de conflito familiar, encaminha a família para atendimento no equipamento da Rede de Proteção, o CRAS que atende o bairro; e referente à situação de crianças ou adolescentes que desaparecem em consequência de violência física, encaminhamos para atendimento no CREAS e também noticiamos o fato para delegacia e promotoria", finaliza.
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