Dos 17 assassinatos em janeiro e fevereiro, quatro são caracterizados como feminicídios, que é o assassinato de mulheres por violência doméstica e/ou de gênero. No mesmo período do ano passado, o estado foi palco para seis feminicídios, segundo Sesed
Por Fábio Vale - Repórter do JORNAL DE FATO
Carla Simone, Ieda Railene e Joana Darc Ferreira. Sabe o que essas três mulheres têm em comum? Elas tiveram a vida interrompida de forma trágica por um ex e/ou atual companheiro. Todos os três crimes aconteceram no final de semana passado, em diferentes municípios do interior do Rio Grande do Norte. Os casos são um retrato do preocupante quadro de violência contra a mulher instalado em todo o país e que ganham destaque por antecederem o Dia Internacional da Mulher, celebrado neste domingo (08).
Para se ter uma ideia desse cenário assustador, somente nestes dois primeiros meses do ano quase 20 mulheres foram assassinadas no Rio Grande do Norte. O dado é da Secretaria Estadual de Segurança Pública (SESED). O levantamento do órgão dá conta de 17 mortes de vítimas do sexo feminino resultantes de condutas letais, entre janeiro e fevereiro de 2020.
Segundo o balanço da Sesed divulgado nesta semana, desse total de femicídios – que é o assassinato de mulheres em geral, quatro são caracterizados como feminicídios, que é o assassinato de mulheres por violência doméstica e/ou de gênero. A secretaria registra que no mesmo período do ano passado, o estado foi palco para seis feminicídios.
Os números oficiais do Governo do Estado mostram ainda que a quantidade de mulheres assassinadas neste começo de ano no território potiguar representa pouco mais de 6%, dentro do universo de mais de 260 crimes letais contra a vida. E as estatísticas detalham que foram oito femicídios e um feminicídio em janeiro deste ano, contra nove femicidios e três feminicídios em fevereiro.
Ainda de acordo com dados da Sesed, no decorrer do ano passado, 102 mulheres foram mortas em todo o estado – 7% do total de assassinatos, sendo 21 feminicídios.
Quatro mulheres são mortas no fim de semana no RN e população protesta contra feminicídios (Rayssa Aline)
No final de semana passado, a violência letal contra a mulher no estado fez quatro vítimas. Os crimes ocorreram nas cidades de Francisco Dantas, Taboleiro Grande, Poço Branco e Arês. Em três das quatro mortes, o atual e/ou ex-companheiro das vítimas já foram apontados como autores dos assassinatos. Uma agricultora de 55 anos de idade, identificada como Joana Darc Ferreira foi uma das vítimas.
Ela foi morta com golpes de faca peixeira no sítio Jacu, zona rural do município de Francisco Dantas, localizado na região do Alto Oeste potiguar. O marido dela, identificado como Joasse Aquino, foi preso logo em seguida pelo crime ocorrido após um desentendimento entre o casal. Carla Simone Nunes da Silva, de 30 anos, foi morta também a facadas dentro de um motel no município de Taboleiro Grande.
O relato é de que o crime aconteceu quando um ex-companheiro da vítima invadiu o estabelecimento a esfaqueou e o atual companheiro, também. Ela morreu no local e o homem foi levado ferido para o hospital. O suspeito ainda seguia foragido até o fechamento desta matéria. E Ieda Railene, de 28 anos, foi morta com golpes de machado no distrito de Poço do Antônio, em Poço Branco.
O autor do crime seria o companheiro dela que fugiu do local após o assassinato, mas, foi detido nas imediações logo depois por guardas municipais. Além desses três casos ocorridos todos no fim de semana passado, uma adolescente de 16 anos de idade foi morta a pauladas. O crime aconteceu na cidade de Arês. O corpo da jovem foi encontrado em um campo de futebol. A autoria e motivação do crime não foram informadas até o fechamento desta matéria.
Em meio a essa série de crimes letais contra mulheres, a população de Currais Novos, na região Seridó, realizou no começo desta semana um ato público em protesto à violência contra mulheres. A manifestação lembrou do caso da universitária Zaira Dantas Silveira Cruz, de 22 anos, morta no dia 02 de fevereiro do ano passado, durante o carnaval na cidade de Caicó.
“Todos nós conhecemos uma Zaira na vida. Então, fazer justiça por Zaira é fazer justiça por muitas”, disse a advogada Kalina Medeiros, da família da vítima, ao Blog da GL, de Caicó. Em abril de 2019, o Ministério Público do Rio Grande do Norte (MPRN) denunciou à Justiça potiguar o policial militar Pedro Inácio Araújo de Maria pelos crimes de estupro e homicídio quadruplamente qualificado pela morte de Zaira. O MPRN requereu que ele seja submetido a Júri Popular. Pedro Inácio está preso no Comando-Geral da Polícia Militar.
Justiça do RN julgou 15 feminicídios em 2019; Mossoró julga um dia 19 e outro em maio
Quinze casos de feminicídios foram levados a julgamento pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte (TJRN) no decorrer do ano passado. A informação foi divulgada recentemente pelo próprio órgão que detalhou que do total de 15 sessões envolvendo esse tipo de crime letal contra mulheres, 13 réus foram condenados e um foi absolvido.
Em todo país, foram julgados 315 acusados de feminicídio, dos quais 277 foram condenados. De acordo com as estatísticas, o número de sessões do júri realizadas para julgar feminicídios durante o Mês Nacional do Júri subiu 42% em 2019 em relação ao ano anterior, quando houve 224 sessões com essa finalidade. Nove em cada dez acusados desse crime acabaram condenados pelo júri popular.
O percentual de condenações dos acusados manteve-se praticamente o mesmo em relação a 2018, 88% contra 87%, respectivamente. E neste ano, mais casos de feminícidios devem ser julgados no estado. O TJRN informou que entre os dias 9 e 13 deste mês, o Juizado da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da Comarca de Mossoró, realizará 57 audiências relacionadas a casos de violência contra a mulher. A ação faz parte da 16ª Edição da Semana Justiça pela Paz em Casa, a ser lançada nesta segunda-feira (09), às 8h no auditório da Estação das Artes Elizeu Ventania, em Mossoró.
A solenidade também marca o início das atividades do projeto “Patrulha Maria da Penha”, realizado pela Prefeitura e executado pela Guarda Municipal, para prevenir e combater a violência contra a mulher. Em Mossoró, no próximo dia 19, Antônio João dos Santos vai a júri por, segundo a acusação, ter matado a companheira Cinthya da Silva Cabral. O caso aconteceu no dia 15 de agosto de 2015, por volta das 19h15min, na Rua Aníbal Trindade, no bairro Santa Helena, em Mossoró. A acusação dá conta de que o crime foi praticado com uso de uma faca e por razões da condição de sexo feminino, no caso, violência doméstica.
E no dia 21 de maio, Leonardo Pereira Lins Ferreira senta no banco dos réus por feminicídio ocorrido no dia 25 de dezembro de 2017. O crime aconteceu na Fazenda Aquário, Sítio Ema, zona rural de Mossoró. Segundo a acusação, agindo, por motivo fútil, fazendo uso de objeto perfurocortante, por razões de condição de sexo feminino, ele matou Luciana Dantas dos Santos, pessoa com a qual mantinha um relacionamento amoroso há aproximadamente três anos.
“A violência contra a mulher acontece de forma cíclica”, afirma pesquisadora
“A violência contra a mulher acontece de forma cíclica. Então, ela não se dá logo com o feminicídio”. A declaração é da Professora do curso de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), Suamy Soares. A pesquisadora explica que a violência contra a mulher passa por fases para que se chegue à violência letal.
Também coordenadora do Núcleo de Estudos Sobre a Mulher Simone de Beauvoir (NEM) e militante da Coletiva Motim Feminista, Suamy Soares conta que só essa semana o NEM recebeu dez mulheres em situação de violência. Ela esclarece que para que se chegue à violência letal contra a mulher ocorre todo um processo dividido em um ciclo de três fases.
Suamy Soares: “Só essa semana já recebemos dez mulheres em situação de violência”
“Acumulação de tensão quando o homem começa a ditar regras de relacionamento, como impedir que a companheira ande com certas pessoas, utilize certas roupas”, pontua ela sobre a primeira fase, ressaltando que acontece até da mulher ser impedida de ter contato com amigos e familiares e se afaste também de atividades de estudo e de trabalho.
A estudiosa cita que a segunda fase é a da agressão física, com violência sexual, patrimonial. “Quando ele quebra alguma coisa dentro de casa, bate nas crianças, maltrata animais de estimação, queima documentos. Tudo isso para que a mulher tenha medo”. Suamy Soares menciona que a terceira fase é a da lua de mel que é quando o homem percebe que ultrapassou o limite da violência e recua, pedindo perdão, dizendo que não fará mais isso e até dando presentes.
Ela explica que é nessa etapa que a mulher resolve dar uma chance e é aí que o ciclo recomeça e se desenvolve com mais força. “A violência letal acontece ou quando a mulher tenta romper esse ciclo, depois de várias vezes que ele acontece, ou quando ela decide terminar o relacionamento”. Ela faz um alerta: “Todas as mulheres já presenciaram situação de violência ou foram vítimas de violência, inclusive as que são feministas”.
A pesquisadora, que estuda sobre as desigualdades entre homens e mulheres desde 2002, revela que ela própria já teve um relacionamento abusivo e que existe o pensamento equivocado de que isso não acontece com uma mulher feminista, empoderada. Ela avalia que há avanços consideráveis na área, como a Lei Maria da Penha, e critica a redução de investimento em políticas públicas para o setor.
Para Suamy Soares, o fato de a sociedade ter uma formação social, política e econômica calcada no patriarcado e no escravismo contribuiu para reforçar a cultura da violência contra a mulher. “Então, todas as instituições e espaços dessa sociedade reproduzem o machismo e as relações desiguais entre homens e mulheres. Por isso, precisamos construir uma educação que dê possibilidade de homens e mulheres viverem em condições de igualdade”, assevera, citando que a problemática se materializa na violência social, física, sexual, psicológica, patrimonial e moral.
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