Marcado por comportamentos e atitudes no ambiente virtual, que envolvem ofensas e ataques, esse tipo de prática criminosa tem se tornado cada vez mais recorrente na internet. Uma lei está sendo discutida para enfrentar esse tipo de crime virtual
Por Fábio Vale / Repórter do JORNAL DE FATO
"Uma dor que só quem sente vai entender". "Eu estou desolada. Estou acabada. Eu estou sem chão". Essas declarações em tom de desabafo são da cantora Walkyria Santos, ao postar um vídeo em uma rede social falando sobre a morte do filho Lucas Santos, de 16 anos de idade. O caso aconteceu no começo desta semana na capital do Rio Grande do Norte, onde a família reside, e reascendeu a discussão sobre uma problemática denominada atualmente de violência digital.
Marcado por comportamentos e atitudes no ambiente virtual, que envolvem ofensas e ataques, esse tipo de prática criminosa tem se tornado cada vez mais recorrente na internet. E na última terça-feira (03), uma situação dessas teve um desfecho trágico em Natal e que resultou na morte do filho da cantora Walkyria Santos.
Bastante emocionada, no mesmo dia ela publicou um vídeo em uma rede social externando toda a dor pelo ocorrido, que interrompeu a vida do filho dela de apenas 16 anos. Contando que o jovem tinha postado um vídeo em uma rede social em "uma brincadeira de adolescente com os amigos" pensando que os internautas iriam achar engraçado, a cantora desabou em chorar e chamou atenção para um comportamento que teria contribuído para esse desfecho fatal.
"Como sempre as pessoas destilando ódio na internet. Como sempre as pessoas deixando comentários maldosos", desabafou, em meio a lágrimas. Ainda no mesmo vídeo, a cantora contou que o filho acabou tirando a própria vida e, utilizando-se do papel de mãe, ela alertou sobre a necessidade de vigiar e estar atento ao comportamento dos filhos. "Foi só uns comentários da internet... que fez com que ele chegasse a esse ponto", declarou Walkyria Santos, revelando que o filho já tinha até feito acompanhamento psicológico; e dizendo que a 'internet está doente' e pedindo para as pessoas terem cuidado com o que falam, com o que comentam.
"Vocês podem acabar com a vida de alguém. Hoje sou eu e a minha família quem chora", desabafou ela na legenda da publicação.
Morte de filho de cantora poderá resultar em lei contra haters
Em outro vídeo postado já na noite desta quinta-feira (05), a cantora anunciou que o deputado federal Julian Lemos (PSL), da Paraíba, tinha apresentado um requerimento para a aprovação de uma lei - que seria denominada de "Lei Lucas Santos" em referência ao filho dela - que estabeleceria punição para os autores de comentários considerados maldosos, conhecidos como haters.
Walkyria aproveitou a ocasião para pedir apoio de todos em prol da aprovação dessa iniciativa. "Eu não consegui salvar meu filho. Mas, o filho de Maria, o filho de José, o filho de Ângela, se a gente puder salvar...", afirmou, reforçando que a lei trará punições, como prisão e multa. "O nome dessa lei vai ser Lucas Santos. Eu vou precisar muito que vocês me ajudem. A gente vai conseguir aprovar essa lei. Não só pelo meu Lucas, mas, pelos muitos Lucas que existem por aí e que estão passando por esse mesmo problema de comentários maldosos", pediu.
O deputado Julian informou por meio de uma rede social que a referida proposta de lei foi sugerida pelo Mestre em Psicologia Clínica e da Saúde, Fabiano Moura, que foi juiz da Infância e Juventude por dez anos. Em pronunciamento na Câmara Federal na última quarta-feira (04), o deputado falou sobre o projeto de lei Lucas Santos. "É preciso debatermos os danos causados e a potencialização das doenças psicossomáticas, sobretudo em crianças e adolescentes", defendeu ele.
"Existem técnicas investigativas que permitem rastrear o dispositivo de origem do crime", explica delegado do RN
Delegado regional de Polícia Civil do Rio Grande do Norte, Jaime Groff explica que muitos dos crimes que ocorrem no âmbito digital estão na praça desde sempre, como o estelionato e os crimes contra a honra. "O que mudou agora foi o meio onde o delito ocorre. Se antes o estelionatário abordava a vítima pessoalmente para aplicar o golpe, agora essa aproximação se dá pelas redes sociais, por exemplo. A mesma coisa ocorre com outros crimes, muda o meio, mas não o delito", esclarece.
O delegado informa que o RN não conta com nenhuma delegacia especializada em crimes ligados à violência digital e que por isso a orientação que ele dá é de que a vítima deve procurar, via de regra, a delegacia mais próxima para registrar o boletim de ocorrência de modo que as investigações possam ser iniciadas. "Apesar disso, existem delitos novos, que lidam com informações de dispositivos informáticos, como o artigo 154-A do Código Penal (Invasão de dispositivo informático)", detalha Groff, que também é especialista em Segurança Pública e professor de Direito Penal, citando o crime de invadir dispositivo informático sem autorização devida, que pode resultar em pena de reclusão de um a quatro anos, e multa.
Groff pontua também que existem técnicas investigativas que permitem rastrear o dispositivo de origem do crime que foi praticado, mas, que esse caminho necessita de autorização judicial para que o Delegado de Polícia possa ter acesso a informações que são sigilosas. "Isso deixa a investigação mais lenta, possibilitando que o criminoso possa praticar mais crimes enquanto a polícia não chega até ele", avalia, acrescentando que a Polícia Civil do RN já participou de curso sobre o assunto com o delegado do Piauí, Alessandro Barreto, coautor de livros como Manual de Investigação Cibernética.
'Já acompanhei histórias de perdas por violência virtual em aplicativos de redes sociais', diz mãe e educadora
A reportagem manteve contato, por e-mail, com uma mãe e educadora com atuação no ensino superior na capital do Rio Grande do Norte. Ismenia Blavatsky, professora adjunta no Instituto Metrópole Digital da Universidade Federal do RN (UFRN), contou que 'já acompanhou histórias de perdas por violência virtual em aplicativos de redes sociais'.
"Sou mãe de um rapazinho de 5 anos. Não tenho filhos adolescentes, mas, já acompanhei histórias de amigas que perderam seus filhos adolescentes. Pelos mais variados motivos associados à violência. Seja ela vinda da ação física violenta de terceiros, em assaltos ou brigas, ou vinda de processos acumulados de violência virtual em aplicativos de redes sociais", relatou Ismenia.
"Acompanho também com muita apreensão os meus alunos, estudantes que se esforçam para se tornarem profissionais em Tecnologia da Informação. E no caso dos meus alunos, existe a preocupação de dois lados: a do sentimento de responsabilidade de formar bons profissionais que sejam capazes de identificar e alertar para condutas nocivas em ferramentas e dispositivos, sejam programas e aplicativos que possam vir a desenvolver; e a preocupação de ser humano, para tentar identificar algum processo de violência virtual a que eles possam estar submetidos", refletiu a doutora em Engenharia pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo.
Para Ismenia, a naturalização de algum episódio de violência é mais prejudicial do que possa parecer. "Ouvi de um aluno certo dia a seguinte frase: 'Disseram que eu não ligasse para os comentários no meu post. Mas não tem como não ligar. Aquilo me afeta demais.' É muito provável que um comentário faça o resgate de algum sentimento ruim, da consolidação de valores que estão em construção, ou que seja um gatilho para pensamentos e ações autodestrutivas. Ninguém pode saber em que processo está o receptor de uma mensagem, independente do que ela possa trazer. Mas, isso não exclui a responsabilidade de se colocar no lugar do outro quando se escreve uma publicação ou um comentário", avalia.
'Os códigos de conduta ainda não evoluíram o suficiente no ambiente virtual', aponta especialista
"Infelizmente, os códigos de conduta que existem para os relacionamentos sociais presenciais ainda não evoluíram o suficiente no ambiente virtual. Embora existam as ofensas e o bullying no relacionamento presencial, no ambiente virtual as pessoas que os praticam podem se valer do fato de estarem do outro lado do monitor, algumas vezes atrás do indicador de ‘oculto’ do aplicativo, e até mesmo de perfis fake, que podem ser criados com objetivos diversos", analisa a professora das disciplinas de Probabilidade e Inteligência Artificial aplicada à Educação, Ismenia Blavatsky, pontuando que a violência virtual pode se dar de diversas maneiras além do cyberbullying, como disseminação não consentida de imagens, discursos violentos, cyberstalking (ou perseguição virtual) e até a censura e o cancelamento.
Como mãe e educadora, Ismenia recomenda que sejam tomadas algumas medidas preventivas para coibir ataques de pessoas mal intencionadas, hackers e dos chamados haters, como limitar o acesso ao perfil e ter cuidado com as amizades virtuais; cuidados com a divulgação de fotos, senhas, endereços ou informações pessoais; e não abrir links suspeitos e manter o antivírus atualizado. Além disso, a docente orienta também que se já existir algum tipo de violência virtual em curso, é fundamental buscar ajuda e efetuar a denúncia, além de adotar medidas como salvar e-mails, conversas, fotos ou print screen que possa contar como prova; efetuar uma denúncia do conteúdo na própria rede social e bloqueio do autor do ataque; e ainda registrar o caso junto à polícia.
Ismenia defende também que a sociedade civil e o poder público podem atuar para coibir esse tipo de prática no ambiente virtual. Ela chamou a atenção para a necessidade de intensificação de ações de esclarecimento dos crimes associados ao mundo virtual e a divulgação de canais de denúncia que sejam efetivos na condução de averiguação e punição, visando a identificação de ações para a efetiva responsabilização e a mudança de comportamento hostil daqueles que praticam esses delitos; e também para o papel da sociedade civil na intervenção em casos de existência de violência virtual, na denúncia e no expresso monitoramento de comportamentos nocivos que possam estimular as várias formas de cyberbullying.
"A sociedade civil também auxilia na construção de valores humanos, o que garante a convivência social pacífica, justa e honesta, estimulando a empatia e o senso de justiça nas situações. Voltá-la para ações de intervenção direta em casos de violência virtual e fortalecendo sua interlocução junto ao poder público pode ser um caminho para unir esforços na proteção das famílias deste mal", refletiu a especialista, acrescentando que a legislação brasileira conta com amparo legal para a caracterização e prevenção de qualquer modalidade de bullying desde 2015, com a Lei Nº 13.185, e também prevê a tipificação criminal de delitos informáticos com a Lei Nº 12.737 de 30 de novembro de 2012.
Criminalista explica como crimes digitais se inserem no Código Penal
A reportagem consultou também o advogado criminalista e membro da Comissão de Direito Criminal da OAB/Mossoró, Júnior Cardoso. Ele explicou que diversas formas de crimes digitais se inserem no Código Penal Brasileiro (CPB). Citando também a recente morte do filho de cantora Walkyria Santos, o especialista explicou que “cyberbullying” nada mais é do que um crime contra a honra praticado em meio virtual.
O advogado disse que, segundo o Código Penal, esse crime pode ser de três tipos: calúnia, injúria ou difamação. “O cyberbullying, por sua vez, é a extensão da prática do bullying do ambiente físico para o plano virtual. O cyberstalking também é crime de ameaça, já definido no Código Penal. Além disso, o cyberstalking também pode ser uma contravenção penal – a perturbação da tranquilidade, já prevista na Lei das Contravenções Penais (Decreto-lei 3.688/41)”, detalhou.
Ele esclareceu que em todos esses casos, as punições previstas no CPB podem chegar a quatro anos de reclusão, e que, na esfera civil, os agressores podem ser condenados a pagar indenizações por dano moral. “Os perfis e e-mails falsos das redes sociais, utilizados por muitos agressores a fim de não terem a sua identidade real revelada, podem ser rastreados e descobertos por meio da análise do endereço de IP (uma espécie de endereço que registra e identifica qualquer ponto de acesso à internet). O IP pode ser descoberto por meio de uma investigação policial autorizada pelo poder judiciário”, explicou.
Júnior Cardoso chamou atenção ainda para o fato de que a violência digital é muito presente principalmente com pessoas LGBTQIA+ e pessoas negras. “Os crimes contra a honra (calúnia, injúria e difamação) são um dos problemas mais recorrentes na internet. Da mesma forma que pode acontecer pessoalmente, esses delitos também podem ser cometidos virtualmente e o autor deverá sofrer as punições. Insultos de cunho racistas são muito frequentes na internet. A violência digital de cunho racista acredito ser a pior violência digital que existe”, afirmou o pós-graduando em Direito Penal e Processo Penal e com atuação jurídica também em casos de crimes digitais ou virtuais.
O advogado pontua ainda que os crimes praticados na internet podem ter natureza cível ou penal. “Ao causar danos a outrem, o agente deverá ser responsabilizado civilmente, podendo esse dano ter cunho tanto material (ao atingir o patrimônio) quanto moral (quando ofende a honra), isso pode ocorrer através de redes sociais, grupos de Whatsapp, blogs etc. Além de certamente ser condenado a pagar uma indenização à vítima, o autor ainda estará sujeito às penalidades no âmbito criminal podendo chegar até a prisão”, destacou, ressaltando a importância de denunciar o ocorrido junto às autoridades responsáveis e adoção de todas as medidas legais cabíveis.
Asseverando que é responsabilidade de todos combater todo tipo de violência, seja virtual ou física, o especialista orienta a vítima a procurar uma delegacia especializada em crimes virtuais ou qualquer outra disponível. “Do mesmo modo, a vítima deve guardar todas as provas possíveis para que seja realizada a identificação do criminoso, tais como prints das páginas que tenham ocorrido as ofensas, conversas, e-mail, vídeos, fotos etc., assim como procurar o mais rápido possível um advogado de sua confiança para que sejam tomadas todas as providências cabíveis”, recomendou.
Advogado esclarece que há limites na internet e que o Judiciário pode ser acionado
Para o advogado Yure Costa, as redes sociais deram voz e palco para bilhões de usuários se posicionarem sobre qualquer assunto livremente. Mas, ele pontua que mesmo sem censura prévia no Brasil e com a liberdade de expressão garantida pela Constituição Federal, há limites na internet.
Citando a Carta Magna, o especialista destaca que “assim como a pessoa pode falar, o alvo da sua fala também é livre para responder, inclusive judicialmente”. Yure Costa assevera que quando alguém se utiliza do direito à liberdade de expressão para inferiorizar e discriminar outrem baseado em características, como sexo, etnia, orientação sexual, identidade de gênero, política e religiosas, assume uma das formas do discurso de ódio.
Mencionando o recente caso da morte do filho da cantora Walkyria Santos, o advogado lamenta o fato de ainda não existir uma lei específica que trate sobre discurso de ódio na internet, apesar de citar a existência do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014). “Da mesma maneira que as redes sociais têm mecanismo para qualquer usuário fazer a denúncia sobre conteúdos sensíveis ou que contenha discurso de ódio, é fundamental que a vítima realize a denúncia em uma delegacia, mas, para isso é fundamental copiar o endereço eletrônico (site, redes sociais), assim com retirar o print (foto) da tela para que seja possível o rastreamento do responsável pela conduta ilícita”, orienta.
“Uma dica boa para se expressar sem ofender ninguém é se perguntar: isso que vou falar inclui as pessoas na conversa e propõe um diálogo ou exclui as pessoas e ainda diminui? Dependendo da resposta, a gente aprende que se calar e ouvir muitas vezes é a melhor maneira de se expressar livremente”, reflete Yure Costa.
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