Por Fábio Vale / Repórter do JORNAL DE FATO
A ocorrência das chamadas Condutas Violentas Letais Intencionais (CVLIs) continua sendo registrada em todo o Rio Grande do Norte. Somente nestes 11 meses incompletos de 2021 mais de 1.200 pessoas já foram mortas no estado. Desse total, a grande maioria se caracteriza como homicídio doloso.
Os dados são da Rede e Instituto Observatório da Violência do Rio Grande do Norte (OBVIO/UFRN). Segundo a entidade, entre o começo deste ano e o início da manhã desta sexta-feira (26), já foram registrados no território potiguar 1.211 CVLIs.
Desse total, 976 casos foram definidos como homicídio doloso. O número apresenta uma redução de 11% em comparação com o mesmo período do ano passado, quando foram notificados 1.097 casos desse tipo. Outro tipo de CVLI que também teve queda neste ano foi o de lesão corporal seguida de morte.
O levantamento do OBVIO/UFRN mostra que foram 19 ocorrências dessa neste ano e 51 no ano passado; o que corresponde a uma diminuição de quase 63%. Casos definidos como latrocínio, que é roubo seguido de morte, também tiveram redução. Foram 53 casos em 2021, contra 57 em 2020, uma queda de 7%.
Por outro lado, dois tipos de CVLIs apresentaram aumento de casos. A morte letal intencional definida como resultante de intervenção policial teve um crescimento de quase 11%. Foram 144 casos neste ano e 130 no ano passado. E as ocorrências de feminicídio, que é o assassinato de mulheres motivado por violência doméstica e/ou gênero, também registraram um aumento de pouco mais de 58%: foram 19 registros em 2021, contra 12 em 2020.
Mais de 90% dos jovens mortos em Natal entre 2011 e 2021 eram negros
Mais de 90% dos jovens mortos na capital do Rio Grande do Norte entre 2011 e 2021 eram negros. Esse cenário preocupante foi tema de uma audiência pública realizada nesta semana na Câmara Municipal de Natal (CMN). O evento chamou atenção para a estimativa de que um jovem negro tem 5,3 vezes mais chances de ser assassinado na capital potiguar do que um jovem de pele clara.
Esses dados da Rede e Instituto Observatório da Violência do Rio Grande do Norte (OBVIO/UFRN) foram apresentados na última terça-feira (23), durante audiência pública na CMN. Os números apontam para o extermínio da população jovem e negra de Natal. Na ocasião, o vereador Pedro Gorki (PCdoB), autor da proposição, destacou que um jovem negro tem 5,3 vezes mais chances de ser assassinado na capital potiguar do que um jovem de pele clara.
Diante desse quadro assustador, o parlamentar defendeu a necessidade de iniciativas coletivas para mudar essa triste realidade. "O sentido dessa audiência é muito maior do que discutir essa situação, mas os caminhos que podemos seguir sobre essa discussão. Que cada sugestão alimente a formação de um grupo de trabalho para atuar sobre o problema do genocídio da juventude em Natal, trazendo um diagnóstico, dados e propostas incluindo entidades diferentes".
Um desses casos de violência letal contra jovens negros em Natal foi o do jovem Geovane Gabriel, de 18 anos de idade, que morava no bairro Guarapes. Ele foi morto em junho de 2020 por policiais militares quando ia de bicicleta visitar a namorada em Parnamirim. A investigação apontou que a vítima foi morta por engano, já que os policiais buscavam outro jovem negro suspeito de roubo.
A mãe de Gabriel, Priscila Souza, participou da audiência e disse que luta por justiça e para que outras famílias não passem pelo mesmo drama. "Continuo revoltada com o que acontece nesse país com o jovem, especialmente negro. Meu filho foi uma dessas vítimas. Ainda vivo em estado de choque, me sinto impotente, mas luto por justiça e clamo para que não aconteça com outros jovens inocentes", declarou.
Advogado avalia que injúria racial equiparada a crime de racismo traz segurança jurídica
O Senado Federal aprovou recentemente o Projeto de Lei 4373/20, que tipifica a injúria racial como racismo e estabelece uma pena mais rigorosa para quem comete esse crime: entre dois e cinco anos de prisão. O texto da proposta segue a mesma linha do Supremo Tribunal Federal (STF), que em outubro último tornou imprescritível a injúria racial, conforme o artigo 5º da Constituição Federal.
O PL aprovado no Senado muda a lei de Crimes Raciais (7.716 de 1989), ao inserir um artigo que diz que quem injuriar alguém terá punição de dois a cinco anos de prisão e pagamento de multa. No Código Penal, o crime de injúria estabelece punição de um a três anos de reclusão e multa. O que antes era considerado um crime contra a honra, portanto, passa a ser crime de racismo inafiançável e imprescritível, explica Matheus Falivene, advogado, Doutor e Mestre em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
"Com esse projeto de lei, a injúria racial passa a ser uma forma de racismo e, portanto, mais grave e imprescritível nos termos da Constituição Federal", destaca ele. De acordo com o especialista, essa mudança traz mais segurança jurídica para a questão. "A Decisão do STF, apesar de alvissareira, não é a forma mais juridicamente mais correta de mudar a lei, ou seja, via decisão de tribunal. Agora, sim, com uma lei aprovada seguindo o processo legislativo, a questão fica mais clara", acredita ele.
"Nos casos de prisão em flagrante, embora a fiança não seja cabível, eventualmente o indivíduo que cometer o crime pode ser colocado em liberdade por meio de medidas alternativas", ressalva o advogado, que atua nas áreas de Direito Penal e Direito Penal Econômico.
Especialistas defendem necessidade de mais políticas públicas
A audiência pública realizada nesta semana em Natal para tratar da violência contra jovens negros contou ainda com a participação de especialistas. De acordo com o professor Jarvis Campos, da Rede e Instituto Observatório da Violência do Rio Grande do Norte (OBVIO/UFRN), entre 2011 e 2021, mais de 90% dos jovens assassinados na capital eram negros.
"Fizemos esse recorte em Natal, mas, a realidade é a mesma do estado. Os negros são o maior alvo dos crimes violentos letais intencionais e existe uma segregação muito forte por áreas da cidade. Isso reflete a desigualdade porque são jovens de áreas de maior vulnerabilidade localizadas nas regiões Norte e Oeste. Esses dados do OBVIO ajudam a subsidiar políticas de segurança pública de modo geral", contou o professor.
A mudança dessa realidade pode estar na execução de mais políticas afirmativas, segundo a promotora de justiça da Cidadania, Danielle Veras. Ela disse que a cultura tem abraçado mais fortemente essas políticas que precisam se estender para todas as áreas. "Precisamos de mais políticas no sentido da afirmação para desconstrução do racismo institucional não apenas na cultura, mas em todas as áreas. O Ministério Público está à disposição para trabalhar na indução e acompanhamento das políticas públicas para descontruir e mudar a realidade desses números" destacou.
Além desses dois representantes de instituições, alguns jovens fizeram pronunciamentos durante a audiência relatando situações que vivenciam. Um deles foi o vice-presidente da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), Roberth Gois, que emocionou ao relatar sobre o racismo institucional que sofre desde a infância. "É muito mais duro pra gente, que é negro, chegar à universidade, permanecer na escola. Não só pelo racismo, mas também pela falta de identidade. O sistema nos mata e nos oprime. Não sabemos se vamos ser violentados no ônibus, na calçada, na parada, na rua... nem se voltaremos sem ser atingidos por bala perdida, sequestrados e mortos pela polícia, ou preso com a única explicação possível de ser negro. Não me arrependo de ter nascido negro, carregar minhas raízes e dizer que vidas negras importam e a gente luta e precisa viver", declarou.
A audiência pública em Natal nesta semana foi uma proposição do mandato do vereador Pedro Gorki (PCdoB) e da Frente Parlamentar da Juventude da CMN, tendo em vista o chamado “Novembro Negro”, que busca chamar a atenção para o combate à violência contra a população negra; e contou com a participação de diversos movimentos sociais, movimentos que defendem os direitos da população negra, Ministério Público Estadual (MPRN), UFRN, gestores das secretarias Municipal da Igualdade Racial e da Estadual da Juventude, conselheiros tutelares, professores e estudantes.
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